É denso o conflito entre o papel atribuído à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental pela sociedade atual. Parece que esquecemos que a escola é parte da cultura humana, expressão máxima do desenvolvimento tecnológico.

A cultura criou um arsenal de coisas que as crianças, nova geração que adentra paulatinamente à sociedade humana, precisam conhecer.
Quando nos afastamos um pouco do cotidiano e o olhamos de fora conseguimos apreciar essa paisagem onde adultos ajudam as crianças a acessar o mundo, principalmente a escola formalmente constituída para esse fim.
A escola, entre tantas coisas que deve dar conta, faz algo essencial para que as novas gerações se apropriem do conhecimento historicamente acumulado: ensina a ler e a escrever.
Dominar como funciona o código escrito é, em grande medida, o que a criança fica sabendo quando está no processo de alfabetização. Porém, esse processo perfaz um longo caminho.
Durante a maior parte de minha vida profissional no magistério não tinha me dado conta do significado que contém os primeiros contatos com a linguagem escrita pela criança. Talvez porque nunca tivesse compreendido bem o que é linguagem escrita e a tivesse confundido com o domínio do alfabeto e a construção de palavras rumo a obedecer as regras da língua portuguesa.
Assim como eu, muitos colegas vão ficar sem acessar o real processo que acontece com a criança quando ela passa a fazer parte de um mundo onde a linguagem escrita é utilizada para se comunicar, em correspondência com uma qualidade eminentemente desenvolvida pela nossa espécie.
Fico mais preocupada ainda quando ouço as concepções correntes dos colegas e me vejo estampada nesses discursos desconcertantes, que um dia também pronunciei, que bradam a todo vapor o que seria letramento na Educação Infantil.
Infelizmente a forma como as crianças são alfabetizadas não lhes deixa muita saída. Elas saberiam dizer-nos para que estão aprendendo a ler e a escrever? Deveríamos ouvi-las a esse respeito.
Mas o que tenho ouvido são discursos infundados, sobre práticas pedagógicas alienantes e pouco desenvolventes na trilha dos pesquisadores da área que afirmam outras concepções a respeito do que é ensinar a linguagem escrita às crianças pequenas da Educação Infantil.
Adoto os princípios da Teoria Histórico-Cultural para falar do assunto. Nesse sentido, para essa teoria, a linguagem escrita é um instrumento cultural complexo. Sua apropriação depende do acesso que o sujeito tem à parcela da herança cultural da humanidade. É essencial no processo ontogenético de humanização porque passam todos os seres humanos.
Quanto à explicação dada pela teoria Histórico-Cultural, deduzo que grande parte dos profissionais pouco refletem sobre o fato da linguagem escrita ser uma herança cultural que deva ser transmitida às gerações mais jovens. Parece que em nossa sociedade ocidental aprender a ler é um destino e que cedo ou tarde aprende-se mesmo. No entanto, a qualidade dessa transmissão é que garante a continuidade ou a produção de bons leitores e escritores de texto. Daí garantirmos que todas as crianças tenham oportunidades iguais quando do contato oferecido pela escola de educação infantil.
As famílias desfrutam de acesso aos livros de forma desigual. Uma criança que em casa tem pais que se utilizam de bilhetes para se comunicar, que fazem lista de compras, que leem jornais e revistas, que possuem livros e que os compram aos filhos, essas crianças têm mais chance de sentir-se parte do mundo da escrita. em comparação a outras crianças que não tem esse convívio. Se algumas crianças apresentam dificuldades com a linguagem escrita, a escola tende muitas vezes a explicar essas dificuldades pela herança genética que não privilegiou a criança. A culpa não é da escola e da sociedade. É da criança e sua família.
Eu diria que a escola está certa nesse sentido se não atentar mesmo à forma como vem agindo em relação à aquisição da linguagem escrita pelas crianças, de modo a perceber que está equivocada a sua concepção de alfabetizar e a maneira como vem procedendo.
É necessário abrir um novo leque de possibilidades. A valorização da linguagem escrita e os motivos de seu uso é aprendido pela criança socialmente. A formação e o desenvolvimento inicial dos conceitos se alimentam na criança pequena muito mais pelas sensações e pelas percepções do que por processos mentais. Por isso, o sentido depende mais dos conceitos partilhados socialmente. As crianças emprestam temporariamente dos adultos os significados atribuídos às coisas. Esses significados são internalizados até serem totalmente incorporados pela criança.
O lugar que a criança ocupa nas situações de contato com a escrita e igualmente o lugar que a escrita ocupa nesses lugares determinará o sentido para ela. São inúmeras as situações em que as crianças aprendem isso. Um/a professor/a que lê e lê para suas crianças ou que mostra que escreve para registrar e lembrar depois, que explica porque faz anotações sobre as crianças, que explora o primeiro signo importante na vida da criança: o nome dela e o expõe na sala e fala sobre ele constantemente, uma professora que anuncia que vai ser a escriba do que as crianças falam e que esse registro permitirá que revisitem o que foi dito, uma professora que cria novas histórias escritas com a ajuda das crianças, enfim,..a criança encontrar-se-á com a linguagem escrita muito cedo e o sentido que ela vai atribuir a ela depende de como se darão estes primeiros contatos.
Vai ficando para trás a discussão sobre se a criança vai escrever no caderno, no quadro, no papel craft, na parede, na folha sulfite ou onde quer que seja. Importante é falar com ela sobre do porquê ela se utiliza dessa forma e o que essa forma comunica de nós, seres humanos.
Quando as crianças chegam ao Ensino Fundamental deveriam, fundamentalmente, responder sobre o sentido da escrita para elas. Um/a profissional da educação que refletir sobre essa pergunta pensando em si mesmo terá grande chance de transformar suas concepções sobre o quê estamos ensinando sobre linguagem escrita às crianças.
A bem da verdade, se nossas crianças ainda estão sendo avaliadas como defasadas quando da entrada no Ensino Fundamental em relação ao que deveriam dominar sobre linguagem escrita, não de todo errados estão esses docentes que chegam à conclusão de que algo faltou. É que faltou mesmo: professores/as da educação infantil não se atualizam e com a melhor das intenções não escolhem práticas promovedoras que inserem às crianças na sociedade letrada. As "atividades" que caracterizam o preparo para o domínio da leitura e da escrita estão longe de serem as que realmente a promovem. São atividades de mãos e dedos, no dizer de Vigotski, e não de reflexão do para quê e do porquê se escreve. Consequentemente, a opção recai sobre treinos estéreis, que perpassam desde colar bolinhas sobre as letras do nome, passar lápis sobre pontilhados das letras, copiar do quadro palavras que começam com a letra igual, estudar antes do tempo e do interesse da criança que letras compõem seu nome, enquanto sequer se analisa que significa ter um nome o que faz de cada um ser único e irrepetível.
Fico muito preocupada que essa discussão é sempre abortada e a educação infantil não avança enquanto docentes do Ensino Fundamental acusam de incompetentes seus pares. Não me parece próximo o dia em que chegaremos a bom termo sobre o assunto. Tem-se à vista, isto sim, um quase retrocesso.
Poucos profissionais da educação infantil sabem que a forma como a linguagem escrita é apresentada à criança faz uma grande diferença. A escrita deve ser mostrada à criança em sua função social, como para escrever histórias, bilhetes, registrar experiências vividas, fatos, enfim, como instrumento de expressão. Mas quando se acompanham as produções escritas das crianças e professores/as vê-se uma timidez estranha em seu uso. Os/as professores/as pouco escrevem para registrar o que as crianças dizem, pouco utilizam de instrumentos e suportes de escrita diversificados. Pouco expõe por escrito suas próprias ideias e dizem isso às crianças. Os docentes não gostam de escrever, parece que poucos se identificam com a linguagem escrita como instrumento de expressão da profissão. Se assim não fosse, não precisariam queixar-se tanto dos relatórios de vivências das crianças emitidos semestralmente aos pais. Aproveitariam e diriam para suas crianças que eles/as (os/as professores/as) contam aos pais o que o grupo viveu com ele/a nesse período do ano.
Meu otimismo me alerta que as coisas podem um dia ficar com esse aspecto mas ainda vai demorar um pouco. Se crianças demonstrarem paixão por escrever e alegria em ler, terão visto os adultos emprestando esse significado enquanto eles ainda não puderem expressar por conta própria.
A teoria é um instrumento indispensável para a organização e reorganização das concepções que orientam nosso pensar e nosso agir. Se pudesse indicar uma boa teoria a ser estudada nesses termos que venho utilizando para justificar a importância da apresentação da leitura e da escrita como instrumento cultural, seria, reiterando, então, a teoria histórico-cultural.
Acredito que Magda Soares (2004, p. 16) dá uma importante contribuição, no sentido de clarear-nos que aspectos concernem à Educação Infantil quando se fala em alfabetização. Sem ingenuidade gratuita, sou sabedora que cada professor, cada professora deve buscar seu próprio processo de apropriação do que significam as palavras de Soares, principalmente quando ela aborda a participação da criança em eventos de leitura e escrita. Sem impor uma situação que pouco significa, é preciso encontrar diariamente os motivos, junto às crianças, do porquê escrevemos e lemos. Soares indica um caminho a esse respeito:
"[...] a educação infantil não deve ter como meta a efetivação da alfabetização (processo de aquisição e de apropriação dos sistema de escrita alfabético e ortográfico). Porém, é necessário que o planejamento da prática pedagógica contemple a introdução ou a ampliação, na vida das crianças, de um "contexto de letramento", entendido como a etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos variados de leitura e escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas".
Espero que este texto vá ao encontro dos colegas que muito rapidamente selaram minha concepção de linguagem escrita como irresponsável e ingênua. Reconheço, sim, sua complexidade e que isso seja também assim encarado pelos meus pares.