terça-feira, 14 de abril de 2015

Leitura de mundo: leitura da palavra

No ano de 2005, Ana Lúcia Goulart de Faria e Suely Amaral Mello organizaram uma pequena obra (pequena em tamanho, grande em importância) sob o título "O mundo da escrita no universo da pequena infância" e na qual encontra-se o texto "Letramento e Alfabetização - implicações para a educação infantil" de Luiz Percival Leme Britto. Apesar de dez anos passados da data da publicação, o texto de Britto está absurdamente à frente da concepção com que nós, profissionais da educação infantil, concebemos o processo de inserção à linguagem escrita das crianças. 

Britto se indaga no texto se a atualização e a incorporação dos novos conceitos de letramento e alfabetização nas práticas pedagógicas implicaram modificações no dilema que enfrenta a educação infantil sobre apresentar ou não formalmente/intencionalmente o código escrito. O autor discorre sobre as origens de ambos os termos - alfabetização e letramento - e cita uma das máximas de Paulo Freire (1982). Esse educador "[...] insistia que a leitura de mundo precede a leitura das palavras, sugerindo com isso que a aprendizagem da escrita só faria sentido se vivenciada pelo sujeito e se tivesse significado para ele" (apud Britto, 2005, p.8). Ainda nessa linha de discussão e reflexão sobre como temos nos relacionado com nosso próprio processo de alfabetização, acrescenta: "a aprendizagem da leitura e da escrita não se resume à aprendizagem do manuseio do código" (idem).

Para Britto, seguindo o pensamento de Soares, o termo alfabetização parece estar fortemente vinculado à aprendizagem das primeiras letras, fazendo alguns autores buscarem uma conceituação que expressasse a diferença entre esse processo e as formas de inserção no mundo da cultura (p. 9). Brito dá ênfase à definição de Soares (1998, p. 18):

Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar e 
aprender a ler e escrever: o estado ou a condição 
que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita [...]. 
Já alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu
 a ler e escrever, não aquele que adquiriu o estado 
ou a condição de quem se apropriou da escrita, 
incorporando as práticas sociais que as demandam".  

A essa altura, Britto nos convida a refletir quais implicações tem o debate sobre letramento e alfabetização para a educação infantil. Sua perplexidade em relação ao assunto se concentra na questão do debate em torno da preocupação de alfabetização em seu sentido mais restrito, "limitado ao desenvolvimento do conhecimento do código, numa dinâmica que em nada contribui para o desenvolvimento de uma educação crítica e solidária". Britto escreve claramente sobre seu assombro diante da situação a que estão expostas milhares de crianças:

"O grande desafio da educação infantil está exatamente
em, em vez de se preocupar em ensinar as letras, numa 
perspectiva redutora de alfabetização (ou de letramento), 
construir as bases para que as crianças possam 
participar criticamente da cultura escrita, 
conviver com essa organização do discurso
 escrito e experimentar de diferentes formas os
 modos de pensar escrito".   

Antecipar o ensino das letras sem trazer o debate da cultura escrita para o cotidiano é desrespeitar o tempo da infância e invocar uma educação tecnicista, argumenta Britto. A falta do hábito de questionar as práticas cotidianas na educação formal já justificou inúmeros equívocos percebidos ao longo da história. Somos, na maioria, frutos de uma educação que não aprendeu a debater as questões de interesse coletivo, mesmo diante de evidentes sinalizações de que essa educação silenciou vozes e corpos. 

O difícil desafio está em compreender, conforme Britto, como profissionais da educação infantil que não se furtam à reflexão, a inserção da criança no mundo da escrita para além de alfabetizá-la. É inseri-la em um universo cultural complexo em que a escrita se apresenta como mediadora de valores e formas de conhecimento (p. 17). Nesse processo, o letramento ou alfabetização se inicia bem antes da entrada da criança no ensino fundamental e não se encerra com o término da escolaridade. Assim, o contato com a linguagem escrita se concretizará se pudermos compreender que viver nesse mundo é dominar os discursos da escrita, ter condições de operar os modos de pensar e produzir a cultura escrita, lendo o mundo e lendo a palavra.

Desejo que em nós, adultos, se inicie o quanto antes esse mesmo processo: o de compreender como devemos mediar o contato da criança com a linguagem escrita, sem reduzi-lo a treino de letras, sílabas e palavras que a criança memoriza sem significado para ela. 


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