segunda-feira, 24 de março de 2014

Certezas temporárias; dúvidas permanentes

Sinto-me deveras satisfeita por ter localizado, em meus garimpos pelos títulos no site da biblioteca de teses e dissertações da Universidade Estadual de Campinas, a dissertação de Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha. Este trabalho pode ser lido como a um romance: enredo, teoria e convencimento. 

"A constituição social do brincar: modos de abordagem do real e do imaginário no trabalho pedagógico", sob a orientação da Drª. Maria Cecília Rafael de Góes, convence o leitor a ler bem devagar, a degustar cada uma das páginas porque este trabalho elucida, na trilha da teoria sociohistórica, de Vygotsky, Leontiev e Elkonin, a importância do jogo de papeis e do jogo de regras para a humanização da criança pequena.

O bebê toca, cheira, experimenta com a boca, observa os objetos em seu entorno. Depois, com a mediação do adulto, incorpora a função social desses objetos e logo ele vai criar situações novas a partir da interação, da imaginação e da necessidade de adiantar-se ao tempo para resolver a desarmonia que detecta na situação a que ele não teria acesso se não fosse por meio do jogo de papeis. 

Ser uma criança, foi o que de mais original nos aconteceu. Ser um adulto lado a lado com a criança é o que de melhor pode nos acontecer. "No processo interativo, o outro destaca, nomeia, dá relevância aos objetos. [...] ali onde a criança só vê situações ou representações concretas de objetos concretos o adulto o faz ver representações e símbolos" (Del Rio, 1990, p.113 apud Rocha, 1994). É preciso sensibilidade para entender que a criança é, para nós, professores/as, o princípio que justifica nossa profissão. Na mediação pedagógica, no delineamento de nossas intenções, cria-se e recria-se esse mundo de que a criança se apropria. Para Rocha, "a mediação é a categoria que permite entender a apropriação do mundo pelos sujeitos". Eis porque recomendo a leitura deste trabalho: ele pode mediar nossa nova interação com as crianças. E junto a elas desocupar-nos de nossas velhas certezas.
   

sábado, 8 de março de 2014

"Por amor e por força"* : o que nos tornou o que somos e o que não podemos ser?

Há alguns dias, enquanto leituras e reflexões me remetem a novos mundos, enquanto ideias repentinas me invadem e eu as oralizo no calor da hora, muitas verdades se desenham sobre a criança que mora em meu interior. Enquanto vou tentando encontrar as palavras que comunicam minhas verdades, Bakhtin (1981, p.95) me avisa:

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades e mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.

É deveras complexa a constatação de que tudo, quase tudo, é resultado de nosso ser em relação direta com nosso entorno. Deveras complexo admitir que meus sentimentos, minhas respostas, minhas emoções, minhas palavras, meus desejos, meus gostos e desgostos foram e são forjados com os que e com aquilo que me cerca. Que venho me construindo desde sempre, desde a primeira palavra que me disseram, desde o primeiro gesto endereçado a mim, desde o primeiro olhar de aprovação ou desaprovação. 

É incrível supor que primeiro fui o "outro" para depois me tornar eu mesma. Que hoje sou todo mundo que fez contato comigo, todas aquelas pessoas que se relacionaram comigo, que mostraram quem eram, que me deixaram pistas e com as quais tenho ainda tanta identificação. 

Mais estupefata ainda fico quando penso que, apesar da força e da insistência da realidade e das pessoas que me educaram, fui capaz de me construir ímpar, diferente, dissonante e não coincidente com todo o trabalho que dispenderam para que eu me tornasse sujeito, ainda que à revelia de que fui "apenas" absorvendo e reproduzindo. 

Quanto trabalho e repetição para formar; quanta contestação! Quanto convencimento; quanto alimento para tornar-se outro do previsto.  

As crianças paulatinamente começam a ser reconhecidas como seres competentes, completos, capazes, dotados de vontade própria, históricos, culturais, portadores de direitos, cidadãos que requerem que os adultos parem de achar que a brincadeira (atividade por excelência desta fase da vida humana, também aprendida socialmente) é subsidiária do futuro. 

A brincadeira não funciona como poupança. Brincadeira é ganhar mesada e gastar já. É meio para se mostrar pessoa agora. A brincadeira não garante nada para o futuro. Ela é reação potencializada na criança diante das condições que o mundo se lhe apresenta. É repositório de linguagens que quando adultos poderíamos usufruir. É fim; não meio. Quando há brincadeira, a criança está. Quando só há futuro pela brincadeira, ela perde o direito de ser.

Assim, se a brincadeira é parte da formação da personalidade, por que é tão difícil aceitar que a educação se materializa quando a criança brinca?

* Empresto parte do título da tese de doutorado de Maria Carmen Barbosa por traduzir o que está em jogo na formação do ser humano. Muitas vezes, pela força, é possível compor um amor inabalável pela profissão.