domingo, 17 de novembro de 2013

Meu encontro com Maria Carmen Barbosa

Participei esta semana de um encontro que considero inesquecível para minha formação profissional. Conheci pessoalmente a Profª, Drª Maria Carmen Silveira Barbosa. E para entender a satisfação desse encontro, insiro-a entre meus favoritos: José Saramago (que não poderei mais visitar na ilha espanhola de Lanzarote pois ele não voltará de carona nas intermitências da morte); Victor-Marie Hugo (que viveu de 1802 a 1885 e produziu o romance "Os Miseráveis", leitura que me causou uma sensação aveludada de escrever); Contardo Calligaris (que consegue me fazer ouvi-lo falar mesmo quando estou apenas lendo, porque, sobretudo, com ele aprendi a reconhecer que o que me passa devo procurar viver).

Maria Carmen Barbosa entrou em minha vida indiretamente, através de seus orientandos em pesquisas de mestrado e doutorado. Interessante o processo em que se deu essa inserção: primeiro li o que outras pessoas pesquisaram sob sua orientação e, por último, li o seu próprio trabalho que a habilitou a atuar como orientadora: "Por amor e por força: rotinas na educação infantil".  

Em nosso encontro não pude compartilhar que reconheço seu pensamento em cada trabalho que orientou nos últimos anos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não pude dizer que essas leituras são responsáveis por quase tudo que sei hoje a respeito de bebês (acrescidas as leituras, também sobre bebês, produzidas pelos cursos de mestrado e doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina).  

Qualquer pessoa interessada em se apropriar do conteúdo de pesquisas orientadas por Barbosa, pode acessar o site da Universidade e encontrará, por exemplo, a dissertação de Paulo Sergio Fochi, intitulada "Mas os bebês fazem o quê no berçário, hein?": documentando ações de comunicação, autonomia e saber-fazer de crianças de 6 a 14 meses em contextos de vida coletiva. Este trabalho remete refletir sobre a imagem de criança que temos. Grande parte do desenvolvimento teórico da pesquisa embasou-se no que escreve Loris Malaguzzi, que Fochi trouxe através do seguinte excerto:

Existem cem imagens diferentes de criança. Cada um de nós tem em seu interior uma imagem de criança que orienta sua relação com ela. Essa teoria, em nosso interior, nos leva a um comportamento de diferentes maneiras: nos orienta quando falamos com a criança, quando escutamos a criança, quando observamos a criança. É muito difícil para nós atuar de forma contrária a esta imagem interna (1994).

Fiquei pensando na imagem interior que tenho dos bebês e também nas imagens que têm cada uma das professoras de bebês que tenho visitado, acompanhado e auxiliado na formação em serviço em nosso município. 

Pensei na graduação em Pedagogia e percebi que não foi apenas esse curso que faz hoje minha concepção de bebês (há de se dizer que, aliás, em muito pouco contribuiu porque de 1988 a 1991 não se falava muito de educação para bebês. Todo mundo evitava esse assunto pois bebês eram criaturas muito desprovidas de comunicação para que nós, adultos na época, estivéssemos preparados para entender, rs ).  

Pensei na minha experiência como mãe. Talvez de lá pudesse extrair informações suficientes para compreender os bebês. Mas percebi que a maioria das vezes o ditado acerta: "Em casa de ferreiro, o espeto é de pau". 

Voltei minhas certezas para minha infância, afinal eu me lembrava que quando tinha três anos nasceu Eliane, minha irmã, com a qual brinquei e até me indispunha ao reclamar para minha mãe que ela atrapalhava minhas brincadeiras de casinha, mexendo em tudo e desarrumando minhas xicrinhas. Também isso não pareceu fundante o suficiente para atrelar minhas concepções sobre bebês. 

Tive quase certeza que foi em 2010, quando a primeira vez trabalhei com uma turma de bebês como professora deles, quando aprendi de uma vez quem são, como são, o que fazem bebês. Mas logo me passou a certeza quando revisitei meus planejamentos, minhas reflexões nos relatórios diários que eu fazia, nas fotografias tiradas dos momentos com eles, dos objetos que possibilitei acesso, dos trabalhos que com eles desenvolvi através de meus projetos, dos móbiles que pendurei na sala, da altura em que pensei que devessem ficar os personagens das histórias que li. 

Percebi que a graduação em Pedagogia, a experiência de ter tido filhos e de conviver com irmãos, a docência de sala com bebês não foi nada suficiente. Constatei, principalmente que, assim como eu, muitas professoras tiveram experiências e vivências similares, sobretudo, muitas delas com longos anos em sala com bebês e ainda assim, práticas pedagógicas que me parecem insuficientes para reconhecer os bebês como pessoas de inteireza. Percebi, então, que meu contato com os bebês foi feito mais de equívocos do que de certezas. Por isso, sou tranquilizada pelas palavras finais da tese da professora Carmen:

Depois de tudo o que aprendemos nas ciências sociais do século XX,
é preciso que os educadores aceitem que os seres humanos
constituem em um campo onde agem distintas forças e que nós, os
educadores, também não somos nada mais do que aquilo que os
outros fizeram ou fazem de nós, e o que nós fizemos dessas
influências. Passa-se a vida inteira tentando forjar um eu, uma
identidade, mesmo que provisória, a partir das possibilidades e
escolhas que se tem. Mas por mais que se queira fazer deste eu uma
consciência una, autônoma, este eu vai continuar sendo cheio de
incertezas, mobilidade, de dúvidas. Este eu, é um eu formado de
outros, um eu permeado, não fixo. É um eu que emerge por amor e
por força.

No encontro com a Profª. Drª  Mariam Carmen houve um debate e uma professora levantou uma questão relacionada às Diretrizes Curriculares publicadas em 2009, sobre os eixos do currículo centrados nas relações e na brincadeira. Sua argumentação foi em relação à insuficiência das práticas pedagógicas com intencionalidade por parte das professoras, detectadas em um município catarinense. É esta a questão que decorre para o pedagogo: em que momento estamos com nossa formação concluída? Pode uma formação estar um dia concluída? Propostas e diretrizes dão conta por si só de sensibilizar os profissionais da educação a melhorar, a aperfeiçoar, a refletir sobre sua prática?

Conhecer Maria Carmen Barbosa deu-me pelo menos alguns caminhos:
- é preciso que nos revisitemos constantemente em nossas práticas e concepções;
- é preciso estudar muito;
- é preciso participar de cursos de formação em serviço e formação continuada;
- é preciso que reflitamos coletivamente os caminhos trilhados pela educação infantil;
- é preciso que nos despojemos de certezas e possamos buscar inovação nas dúvidas;
- é preciso buscar compreender o ser professor como uma atividade política;
- é preciso compartilhar nossas oportunidades (esta que faço aqui, por exemplo).

Termino com um pensamento de Lyotard, comentário em uma entrevista, que acessei pela tese de Barbosa, e que muito me diz sobre "ser" para o outro:

se eu devesse atribuir uma finalidade à educação - é uma pura hipótese da minha parte, - seria a de tornar as pessoas mais sensíveis às diferenças, de fazê-las sair do pensamento massificante. É preciso educar, instruir, nutrir o espírito de discernimento, formar para a complexidade (In: Kechikian, 1993, p.50).

Muito obrigada, Professora Lica!

domingo, 3 de novembro de 2013

A vida dos bebês como indicadores para melhorar a prática pedagógica dos/as professores/as

Tenho me deparado constantemente, nas salas de berçário que visito, com bebês que reagem de diferentes maneiras à minha presença. À primeira vista poderia supor que as reações deles são expressões de desaprovação e desconforto. Já cheguei a me perguntar até que ponto tenho o direito de "invadir" esse espaço, subentendido dos bebês, de suas professoras e dos demais profissionais que atuam próximos ao berçário.

Se não fossem as produções acadêmicas (teses e dissertações) sobre e com os bebês, publicadas pelas universidades nesta última década, bem poderia concluir que, de uma vez por todas, os bebês devem ser deixados em paz. Não deveríamos expô-los a aceitar que adultos, como eu, alheios ao ambiente já "familiar", viessem perturbar o seu bem-estar.

Isto seria verdadeiro se considerarmos os bebês seres fragilizados, incapazes e inaptos a socializarem-se e a socializar os que com eles fazem contato. Ora, a criança desenvolve  nos primeiros anos de vida uma incrível capacidade comunicativa. Dentre alguns trabalhos que tenho lido e que argumentam a competência interacional de bebês está o de Joselma Salazar de Castro, intitulado "A constituição da linguagem e as estratégias de comunicação dos e entre os bebês no contexto coletivo da educação infantil", dissertação defendida no ano de 2011, na Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação Eloísa Acires Candal Rocha. Esta pesquisadora defende que os bebês, ao interagirem com os pares e com aqueles que são diversos de si, crianças e adultos com características físicas, modos de agir e de pensar, com histórias e culturas diferentes, enriquecem o repertório criativo das crianças e ampliam as ações comunicativas que se constituem pela linguagem desses pequenos (p.23). Nas palavras de Castro (2011, p. 98) encontramos :

Ao refletir sobre essas estratégias de comunicação como constituidoras da linguagem entre os e dos bebês, torna-se importante pensar que, entre crianças que ainda não falam, os recursos comunicativos serão amplos e diferenciados do que se vê entre crianças maiores, já com o domínio da linguagem verbal. Nesse sentido, o corpo, os gestos, olhares, sorrisos, choros e algumas verbalizações, [...] foram observados como princípio para a compreensão de como o processo da linguagem, na sua complexidade, ocorre. 

Por isso, antes de pensar que os bebês sofrem ou se sentem melindrados com minha presença, vou entendê-los como seres componentes de uma geração específica, que têm como forte característica a dependência na satisfação de suas necessidades nos adultos mas que rapidamente são capazes de se apropriar das relações estabelecidas em seu entorno, como de sua composição.

E quando à minha presença reagirem com olhares de curiosidade, com sorrisos largos, com choro, escondendo-se atrás de suas professoras, sumindo pelos cantos da sala ou debaixo de berços, agarrando-se ao pescoço de algum adulto bem conhecido ou oferecendo-me brinquedos, abraçando-se a mim voluntariamente, sentando em meu colo, interagindo com brincadeiras diversas... saberei que se trata da linguagem de bebês, que se constitui pela interação com diferentes contextos históricos e sociais e se transformam continuamente pela sua própria ação e pela ação com outros sujeitos coetâneos, crianças maiores e adultos (Castro, 2011, p. 44).

Pelo exposto e com a ajuda elucidativa de pesquisas que têm privilegiado os bebês e crianças pequenas como sujeitos, sobre os quais começa-se a conhecer mais, graças à sociologia e à antropologia da infância, vou continuar querendo me aproximar mais e mais das salas de berçário pois, segundo Cerisara "o conhecimento sobre quem são as crianças, o que elas fazem, como brincam ou como vivem suas infâncias é, antes de tudo, um ponto de partida que possibilita elaborarmos indicadores para a prática pedagógica dos professores" (2004, p. 37-8).

Além de escolhermos como educar bebês, quem sabe incluamos contar com a ajuda deles para fazer-nos melhores profissionais da educação, pois como alerta Prout (2004), os adultos apresentam um caráter de inacabamento tanto quanto as crianças, e que, como característica humana, somente se avança no processo de humanização, por meio da socialização e da interação entre um sujeito e outro" (citado por Castro, 2011, p. 102).

Sendo assim, ainda que pertencentes a gerações diversas, alguma similitude sempre aproximará adultos e crianças.  
 

sábado, 12 de outubro de 2013

O dia, a semana, o ano da criança: entre o paradoxo e as possibilidades

Desde os meus primeiros anos na escola, não na educação infantil, a proximidade do mês de outubro me animava. Alguma atividade diferente ia acontecer. Havia os famosos piqueniques, quando abandonávamos o pátio da escola e íamos nos divertir em algum lugar aprazível, com lanche preparado para a ocasião e brincadeiras de molhar os pés no riacho do pasto onde ficávamos longas horas a aproveitar. Boas lembranças... e, quando encontro alguém dessa época, que experimentou piqueniques como aqueles, é quase certo que as memórias serão compartilhadas, sempre emocionados pelo prazer que nos ofereceram.

Por que lembramos dessas ocasiões mesmo depois de 20, 30 anos transcorridos? O que têm essas vivências de tão perenes que não as esquecemos? Para que serviam esses dias passados fora das salas de aula, sem, aparentemente, muita conexão com os  conteúdos do currículo escolar?  

Outros tempos vieram. Inimaginável para muitas crianças de hoje participar de momentos como aqueles. Não sei se as crianças sabem o que é um piquenique com a turminha da escola mas  essa experiência foi substituída por outra, que, convenhamos, não sei se pode ser denominada de experiência: as crianças de agora ganham presentes no dia da criança. O comércio agradece.  
Desde 1988, quando pela Constituição Federal a criança passou a ser considerada um sujeito de direitos (os tais piqueniques aconteceram antes de 1988), as transformações da mentalidade dos adultos em relação à criança e à infância pouco ascenderam, instalando um paradoxo: a criança cada vez mais considerada, ao lado de uma criança cada vez mais isolada do convívio social. Por isso Sarmento e Pinto (1997), inspirados em Qvortrup (1995), destacam aspectos que podem nos fazer refletir sobre a forma como as crianças são compreendidas a partir da ótica dos adultos, o que quase autoriza a dizer que, realmente, devemos muito mais do que presentes às crianças. Os adultos, inauguram, assim, um grande paradoxo pelo fato de:

desejarem e gostarem das crianças, apesar de “produzirem” cada vez menos crianças; de cada vez disporem de menos tempo e espaço para elas e de cada vez mais viverem separadamente seu cotidiano; de valorizarem a espontaneidade das crianças, mas cada vez mais estas serem submetidas às regras das instituições; de postularem que deve ser dada prioridade às crianças, mas cada vez mais as decisões políticas e econômicas que envolvem a vida das crianças são tomadas sem as terem em conta; de concordarem que deve ser dada às crianças a melhor iniciação à vida, ao mesmo tempo em que estas permanecem longamente afastadas da vida social; de que devem ser educadas para a liberdade e para a democracia, ao mesmo tempo em que as organizações sociais dos serviços para a infância se assentem no controle e na disciplina; no reconhecimento do valor atribuído às escolas pela sociedade, sem que estas reconheçam o papel da criança na produção do conhecimento.*  


Quero agora voltar meu olhar para a educação dos bebês e das crianças pequenas, que não fazem piqueniques e nem se sentem como as crianças da escola fundamental, mas que compartilham grande parte de suas vidas com adultos e outras crianças e para as quais as atenções se voltaram esta semana de modo especial. As crianças da educação infantil compartilham com as crianças maiores o paradoxo levantado por Sarmento e Pinto. Por outro lado, levantam a hipótese de que há mais e outras possibilidades de estarem elas em pleno uso de seus direitos se os adultos começarem a ampliar sua visão sobre o mundo infantil e as culturas infantis. Se o dia da criança, a semana da criança forem expandidas para ano da criança (todos os anos), certamente haverá não só piqueniques em outubro mas vivências intensas o ano todo, com encontros de crianças de diferentes idades e  turmas, interações com professoras de outras turmas, com a presença de adultos que cantam, dançam e fazem dramatizações constantemente, com planejamento coletivo e principalmente, alegria no semblante do adulto. Do adulto? Sim, de um adulto mais leve, que pode proporcionar intervenções constantes pois vê crianças em pleno gozo do seu direito de ser criança.




 Parabéns a todos os adultos que conseguirem fazer o ano inteiro ser da criança.  


* Excerto extraído da tese de doutorado de Leila Lira Peters, sob o título: "Brincar para quê? Escola é lugar de aprender! Estudo de caso de uma brinquedoteca no contexto escolar". UFSC, 2009, p. 17.


Este texto foi inspirado por minha amiga Cármen, que, com sua sensibilidade e atenção, permitiu-me aprofundar esta reflexão.


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Histórias sobre o bebê que fui

Considero ínfimo meu tempo de experiência com bebês e crianças pequenas. Mas não é nada insignificante a quantidade de mudanças que ocorreram em mim a respeito do trabalho como professora de bebês nos últimos meses, principalmente quando me deparo com um convite à reflexão como faz Malaguzzi (1994) nesta passagem:

"Existem cem imagens diferentes de criança. Cada um de nós tem em seu interior uma imagem de criança que orienta sua relação com ela. Essa teoria, em nosso interior, nos leva a um comportamento de diferentes maneiras: nos orienta quando falamos com a criança, quando escutamos a criança, quando observamos a criança. É muito difícil para nós atuar de foma contrária a esta imagem interna".  

Grande parte inconsciente, a forma como eu fui bebê ainda está em mim, assim como a forma que minha mãe educou seu bebê (eu).

Munha mãe contava, com grande orgulho, duas passagens. A primeira aconteceu quando eu tinha mais ou menos nove meses e já ficava perfeitamente em pé, se apoiada. Uma amiga de minha mãe parou, um dia, de carro, em frente a nossa casa e me convidou, aos nove meses, para um passeio. Lá fui eu, de pé sobre o acento do carro, que ainda era daqueles inteiriços, afinal isto já faz muito tempo! Minha mãe contava que eu voltei do passeio, depois de mais de duas horas, sem ter feio xixi na calcinha. (Pasmem, aos nove meses eu já estava sem fraldas!) A amiga de minha mãe tinha me segurado para fazer xixi, como faziam as avós há muito tempo.

A segunda passagem que ouvi inúmeras vezes sobre meu "ser bebê" foi a do martelo. Na casa acoplada à escola em que nós morávamos, havia um janelão que ia até o chão. As mulheres da comunidade, impressionadíssimas, perguntavam a minha mãe como sua filhinha, tão pequena, ainda não quebrara o vidro da tal janela. Satisfeita e conclusiva, minha mãe respondia: "é que eu não dou um martelo na mão dela!"

Essas imagens são prevalentes e interferem, como fatos memoráveis, em minhas concepções a respeito de bebês e crianças pequenas. E novas perguntas surgem da reflexão que a memória me suscita: 
- O que faço com minhas memórias?
- Como me constituí através dessas memórias e até que ponto elas me constroem professora de bebês?
- Como me humanizo através de minhas memórias para ser uma adulta mais consciente de seu papel como professora de bebês?
- O que quero para os bebês na sociedade atual?
- Os bebês de hoje se parecem com o bebê que fui?
- Que concepções orientam práticas que veem os bebês como atores sociais competentes, autônomos, capazes, protagonistas e independentes?

Sinalizo algo que não posso mais ocultar: responda-me estas perguntas e dir-te-ei se acreditas que há  infâncias e crianças. 



terça-feira, 1 de outubro de 2013

A música estava lá mas o silêncio falou mais alto

Aruna Noal Correa, logo nas primeiras páginas de sua tese de doutorado escreve assim: "[...] somos aquilo que vivemos, somos nossas experiências, positivas ou negativas". Este pensamento consta em sua tese, que recebeu o título de "Bebês produzem música? O brincar musical de bebês em berçário", defendida, neste ano, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Maria Carmen Barbosa. (Hora dessas dispenso a formalidade e passo a chamá-la de uma vez por todas de "Lica" pois ando me achando já íntima de suas ideias, de sua perspicácia e conhecimento a respeito de bebês). 

Correa investiga a competência sonoro-musical de bebês e hipotetiza, baseada nas afirmações de Schafer (2001), que "se os bebês tiverem contato com a música, de forma mais instigante, que trabalhe a curiosidade musical no seu cotidiano, quem sabe possam vir a ser diferentes daqueles bebês que foram os adultos de hoje. Adultos esses que, como eu, ou você deixam de escutar a música ou a paisagem sonora que entra por nossa janela, o tempo todo, sem que a reparemos" (Correa, 2013, p. 19).

Pois então...

Na minha casa sempre houve música. Não fui um bebê que se dividiu entre casa e Centro de Educação Infantil. Lembro-me, sim, das babás que me cuidaram enquanto minha mãe trabalhava como professora. Ela tocava acordeon e cantava muito e sempre. Ensaiava cantos líricos com o pastor e havia uma promessa nesse ramo em outro país, que ela, na verdade, nunca perseguiu como um sonho a realizar.

O que minha mãe fazia para compensar o que a vida não podia lhe proporcionar, uma vez que o casamento já lhe incumbia de duas filhas, foi ser uma professora apaixonada por música. Não havia dia em que cantar faltasse em sua sala de aula. Utilizava-se do acordeon, inclusive, o que somava muito mais emoção aos momentos de canto com seus alunos.

Esta tese de doutoramento de Correa alargou meu olhar sobre o que significa a presença da música nos berçários. Aruna (2013, p. 52) cita John Cage que sinaliza: "Música é sons, sons a nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concerto." Os autores mencionados me auxiliaram a compreender, principalmente Brito (2003, p. 35), que "[...] o processo de musicalização dos bebês e crianças começa espontaneamente, de forma intuitiva, por meio do contato com toda a variedade de sons do cotidiano, incluindo aí a presença da música".

Por esse critério, fui um bebê privilegiado. Tomava, certamente, contato com os sons do mundo e sobretudo, com a música que minha mãe cantava ou tocava no seu acordeon, ou as duas coisas juntas. É claro que isto não me tornou uma exímia em música. Sequer domino algum instrumento musical. Defendo, apenas, que a presença da música nos berçários se caracteriza como uma brincadeira do bebê, fazendo os primeiros sons, as primeiras manifestações sonoro-musicais como uma de suas linguagens.

Sobretudo, nós, adultos, precisamos entender, como afirma Correa (2013, p.22) que música não é sempre aquela que a televisão ou o aparelho de som traz. E, esta sensibilidade precisa ser apresentada de outra forma [...]". Bem como, segundo Ilari (2006, p. 294), "[..] não há qualquer garantia de que as experiências musicais tornem o bebê um ser mais inteligente". Assim, o objetivo de fazer/oferecer o contato com música aos bebês para além do brincar sonoro-musical que o bebê já produz seria ter em mente que "[...] o princípio é a experiência com sons" argumenta Barulhar de Lino (2008, p. 24).

Em meu caso particular, fui um bebê exposto à música e em minha memória se inscreveu um gosto, hoje traduzido na certeza de que a harmonia dos sons sensibiliza bebês até quando estamos fazendo o som do silêncio profundo. 

domingo, 29 de setembro de 2013

Desejar, ler, encontrar...

Já é tarde... preciso dormir  mas esta história tenho de contar hoje ainda.
Conheci um professor, doutor em Educação Infantil, mas eu não sabia disso naquela manhã.
Nossa equipe de Educação Infantil da Secretaria de Educação foi visitar a Secretaria onde ele era um dos diretores. Fomos ciceroneados em visita a três Centros de Educação Infantil e depois recebidos na Secretaria de Educação. Passamos o dia com Altino José Martins Filho, autor da tese: "Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na educação infantil", defendida no primeiro semestre deste ano, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação da Profª. Drª Maria Carmen Barbosa. De novo ela, a sensível Lica, como seus orientandos intimamente a chamam.

Voltamos para nosso município naquele dia e eu ignorando com quem tínhamos passado o dia, porque, às vezes, não procuramos nos ater ao nome completo de uma pessoa. Foi por isso que eu só soube que tinha conhecido o autor da tese que li no fim de semana passado, como quem devora um romance de Vitor Hugo ou de José Saramago, meus autores favoritos, na segunda pela manhã, quando minha colega leu o nome completo de quem havia acordado em nos receber como visitantes.

São tantas as passagens que mexeram comigo na pesquisa de Martins Filho mas por hora, pelo adiantado de meu cansaço hoje, só quero deixar uma ideia que encontrei no texto deste autor: a de que o cuidado é inerente à profissão de professor\a de educação infantil. Mas a supervalorização da dimensão cognitiva é tão difundida  na sociedade ocidental que ao cuidarmos de nossas crianças  pensamos que a desativamos, só a retomando quando voltamos a desenvolver as propostas ditas de "cunho pedagógico".

Sinto-me compelida a compartilhar mais de minhas reflexões em função da leitura do trabalho do professor Altino. Durmo com a vontade e sei que vou acordar perseguindo a oportunidade.


Dedico este texto a minha amiga e colega de trabalho Cármen, que não foi conosco em visita mas é testemunha do que um deslocamento geográfico pode provocar numa professora quando o desejo a move.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ciência e reavaliação: como a biruta do aeroporto

Meu trabalho atual se caracteriza, dentre outras atribuições, por visitas de acompanhamento às professoras de Berçário nos Centros de Educação Infantil. Este papel não se assemelha a de uma pesquisadora acadêmica, porém,  certamente, remete-me corroborar com Fernanda Carolina Dias Tristão, que em 2004 defendia sua dissertação na Universidade Federal de Santa Catarina, elaborando algumas ideias genuínas sobre o trabalho realizado por professoras de bebês em uma creche de Florianópolis, onde permaneceu cinco meses como pesquisadora.

Tristão escreve sobre o que acontece quando a professora concebe os bebês como seres competentes. Afirma que as possibilidades do trabalho pedagógico com os bebês se amplia muito. Os meninos e meninas reais com os quais ela conviveu nos meses de pesquisa, mostraram que há espaço para que as ações pedagógicas possibilitem brincadeiras que envolvem a fantasia, a imaginação, o companheirismo, a cumplicidade, o contato com crianças de outras idades semelhantes ou de outras idades, o desafio de explorar materiais e recursos e ambientes diferentes. De minha parte afirmo que as salas de bebês não necessitam, por exigência advinda de um lugar desconhecido, assemelhar-se, pela assepsia do ambiente, a quartos de hospital ou, quando ao contrário, a salas destituídas de harmonia ou toque de cuidado. Sobretudo, ao adentrar nas salas que visito, é possível reconhecer quem são as adultas professoras que habitam com seus bebês aquele espaço de vida coletiva.

A dissertação de Tristão também aborda a importância de conhecer cada uma das crianças e suas famílias, estabelecendo parcerias. O respeito para com as particularidades de constituição das famílias das crianças é indispensável. Um dos pontos fundamentais de respeito para com as famílias  e para com as próprias professores pelo trabalho que elas realizam é a prática da documentação. Esta documentação revela o cotidiano de crianças e adultos na unidade de educação infantil, por intermédio de diversas formas de registro, otimizando a comunicação entre ambos.

Por outro lado, não é possível fazer-se ver o que primeiro não é visualizado por suas protagonistas, isto é, as próprias professoras. Um misto de incredulidade e desconcerto se mescla no semblante das profissionais que atuam no berçário, sempre que menciono que todas as atividades realizadas com as crianças deveriam estar contempladas pelo planejamento. Parece que Tristão também sentiu o mesmo com a professora que ela acompanhou. Ela afirma: "O mesmo permito-me afirmar do seu planejamento - o escrito estava muito aquém do que acontecia em um dia no berçário: planejava atividades; os relacionamentos, os banhos, os momentos de sono ou de alimentação (que, devo ressaltar, eram marcados por muita intensidade), não eram pensados".

Tristão pergunta se nos cursos de formação as professoras estariam aprendendo a registrar, documentar e planejar. Nas próprias palavras da autora: "Registro e planejamento são ensinados como instrumentos elementares da prática pedagógica ou são ensinados como formalismos de uma instituição burocrática? Aprendem a planejar tempos, espaços e relações como determinantes da atuação pedagógica ou apenas coisas a serem feitas - atividades?" Lamenta, acrescentando: "É uma pena que práticas, como as da professora que acompanhei, não sejam respaldadas na reflexão ancorada nos registros e planejamentos. É por meio desses que o trabalho docente ganha visibilidade, torna-se concreto, pode ser discutido, elaborado e avaliado".

A autora finaliza esta parte da reflexão afirmando que não há manual de como ser professora de bebês e crianças pequenas. Poder-se-ia contar com o conhecimento produzido da experiência docente das professoras mas "que só pode ser apreendido e compartilhado se estiver escrito".

Algumas egressas do curso de Pedagogia poderiam afirmar que eu, como professora que fui neste curso, tampouco discuti práticas relacionadas a bebês e crianças pequenas. E todo o Colegiado de professores da época, sobretudo, pelo momento histórico, por inúmeras questões de que hoje estamos cientes. É justamente este um dos motivos pelo qual é necessário, que eu, incansavelmente, erga essa bandeira. Ontem não sabíamos. Hoje temos a obrigação de não continuar ignorando.

As pesquisas que venho lendo dizem-me todo dia: o futuro da educação infantil começa hoje. Se nos empenharmos a estudar, a nos atualizar, a discutir, a rever nossas concepções poderemos afirmar, junto com a velocidade da evolução dos bebês: todos os dias aprendemos algo novo. E nossa aprendizagem na educação infantil é ascendente. Quanto mais estamos com eles, melhores docentes nos tornamos, se continuarmos estudando e refletindo.

Só a ciência tem o estatuto para mudar de ideia. O senso comum nos aprisiona no dogma.       

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A triangulação de Victor

Semana passada veio visitar-me uma grande amiga, colega de docência do tempo de UNERJ, Drª. Graziela Escandiel de Lima. Contei-lhe minha paixão pelos bebês e sobre as leituras que venho garimpando, no intuito de compreender melhor como os bebês se desenvolvem e se educam em espaços coletivos, isto é, em nossa cidade, nos Centros de Educação Infantil.
Fiquei me perguntando se a visita de Grazi tinha apenas o intuito de matar nossa saudade ou se...
Quando ela estava saindo aqui de casa, pediu uma caneta e um pedaço de papel e escreveu o nome de um pesquisador que recentemente defendeu sua dissertação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O nome dele é Paulo Sergio Fochi.
No dia seguinte fui verificar do que se tratava e no site da Universidade encontrei: "Mas os bebês fazem o quê mesmo no berçário, heim?": documentando ações de comunicação, autonomia e saber-fazer de crianças de 4 a 14 meses em um contexto de vida coletiva, dissertação de Mestrado defendida em fevereiro deste ano, sob a orientação da Drª. Maria Carmen Silveira Barbosa. Na banca de defesa da dissertação: Craidy e Ostetto, de quebra.

Levei dois dias para ler o trabalho de 172 páginas, tamanha minha curiosidade em conhecer o conteúdo mais atual sobre bebês neste nível de pesquisa. E qual não foi minha surpresa ao ver que Fochi se inspirara teoricamente nas ideias Loris Malaguzzi, Emmi Pikler e Jerome Bruner.

Já não sei mais se a triangulação foi do trio Malaguzzi, Pikler e Bruner ou entre Grazi, os bebês e eu*.

Quando me debruço a ler um texto, resultado de uma investigação como a que cito aqui, que teve como orientadora e membros de banca as professoras doutoras acima citadas, sinto-me como que garimpando pedras preciosas. E se o referido trabalho envolve autores que atualmente tomaram uma importância como a que me foi dada de presente com Malaguzzi, Pikler e Bruner, então tudo se justifica: sou uma professora de muita sorte.

Malaguzzi e Pikler entraram em minha vida por intermédio do V Colóquio em Educação Pré-Escolar, realizado em São José, SC, no mês de julho do corrente ano. Duas palestras foram elucidativas quanto às propostas do Instituto Lóczy e as escolas de educação infantil de Reggio Emília e seu idealizador Malaguzzi.

Bruner me veio de surpresa numa palestra para professores de Ensino Fundamental, proferida, no final do mês de julho último, pela Drª. Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida - PUC/SP. A palestrante trouxe um pensamento de Bruner que me falou em especial: o conceito e o significado da narrativa de uma experiência. Para Bruner, a narrativa é uma representação que o sujeito faz da experiência histórica, social e do sentido que atribui a sua vida, de sua compreensão sobre como a realidade é construída e como, comunicando pela narrativa, lidou com tudo isso (1997). No trabalho de Fochi, Bruner teve papel preponderante porque o ajudou a compreender sobre a linguagem e a narrativa dos bebês.

A dissertação de Fochi nos possibilita parar para observar a capacidade que os bebês têm de explorar os ambientes e o mundo que abrimos para eles. O pesquisador acompanhou nove bebês de Berçário I, isto é de 4 a 14 meses, descrevendo alguns episódios de exploração que eles realizaram e de encontros entre pares, através de registro fotográfico e descrição detalhada e fundamentada. Fochi convida o leitor a se convencer de como bebês, por muito tempo vistos como dependentes, incompletos e imaturos, podem nos surpreender por seu protagonismo, competência e completude no que tange às capacidades de convívio, exploração e interação no ambiente, com o ambiente, com outros bebês e com adultos.

É preciso reconhecer que o campo de pesquisa sobre bebês ainda engatinha. Talvez nem isso. Apenas esteja começando a se equilibrar, sentado, rodeado de almofadas. Mas como sabemos o fim desta história, um dia esse bebê há de andar.

* Eu falo em triangulação de Victor, porque foi o sociólogo e professor Victor Alberto Danich, meu colega docente também da UNERJ, que um dia interpretou um fato semelhante que me ocorreu, como uma triangulação que, segundo ele, envolve três personagens afins em uma história que os liga de alguma forma a um fato comum.

domingo, 25 de agosto de 2013

Se você mudar de ideia, avise-me!

O texto anterior, que intitulei "Santo de casa não faz milagre! Não?" foi escrito enquanto lia a dissertação de Mestrado de Rosinete Valdeci Schmitt "'Mas eu não falo a língua deles'!: as relações sociais de bebês num contexto de educação infantil". Bem... hoje finalizei a leitura.

Enquanto os dias passavam e novas ideias me eram presenteadas por Schmitt, devia ter escrito os pequenos episódios que a leitura me sugeria. Arrependo-me de não tê-lo feito, já que assim perdi grandes oportunidades de refletir o que me concernia neste texto.

Relendo minhas anotações, em especial a anotação de um excerto da página 195 da dissertação, vejo que mudei minha relação com a profissão de professora de educação infantil. Causa-me admiração como o ser humano pode ser afetado tão profundamente em suas concepções a respeito de seu trabalho em pouco mais de três anos, a ponto de dissolver antigos conceitos para instaurar novos de uma forma tão contundente.
Sou dessas sobreviventes que olham para trás e renomeiam as experiências de sofrimento. Sim... minha primeira experiência em Educação Infantil foi de muito sofrimento. Ainda bem! Se não o tivesse sido, talvez eu não a considerasse tão importante agora. Muitas pessoas não gostam de admitir que um dia começaram e tiveram dificuldade e quantas dificuldades foram! Nesse sentido, não me causa constrangimento algum em pensar que há três anos eu não fazia a menor ideia do que era ser professora de bebês. Creio que ainda tenho muito o que aprender. Porém, reconhecer que esta profissão me encanta e me move todos os dias é, no mínimo, uma de minhas maiores alegrias atuais.
Quando constatamos nossa ignorância como o primeiro passo para começar a conhecer, nossos sentidos se aguçam e tudo que se passa no âmbito de nosso interesse começa a ter um novo significado.
Por isso, o texto de Schmitt veio ao encontro de minhas perguntas, de minha fome de saber mais, de minha ânsia de interpretar o que acontece nas salas de berçário que tenho visitado. Sobretudo, a leitura dessa dissertação e outras que estão na fila de espera, remetem-me à suspeita que me rondava, quando, há três anos, não me conformava com a crença das pessoas, com as quais iniciei, sobre ser a "hora da atividade" a única que faria a educação dos bebês. Comecei engatinhando, como os bebês, a incluir em meu planejamento e reflexão pós-ação, a necessidade de dar visibilidade a um cabedal de "outras" atividades para e com os bebês, que, equivocadamente, não eram reconhecidas como importantes por aquelas pessoas que me avaliavam como professora.   
Identifiquei-me hoje com minha prática de cuidados no tempo de professora do curso de Pedagogia. Só nessa pequena parcela de cuidado que era devolver os textos aos/às acadêmicos/as com sugestões, perguntas, observações vejo uma boa mostra do que se poderia chamar "pedagogia de cuidados". Uma professora, um professor, então, independente com que idade pratica a docência, é afetado pela atitude de cuidado para com seus discentes.
É possível ser professor/a sem a intenção de "cuidar" da educação do outro? Cuidar, em analogia com a forma que Luckesi explica a primeira atitude do avaliador frente à situação a ser avaliada, que é a de acolhida, ou seja, o educando na forma em que se encontra.

No âmbito da Educação Infantil "os cuidados" são a tônica do trabalho do/a professor/a. Quem está inserido nos Centros de Educação Infantil sabe do que estou falando. Mas a questão não está bem resolvida, muito menos esclarecida o suficiente para os profissionais da primeira infância, quem dirá à sociedade que não imagina a complexidade que o assunto encerra!

Quanto mais se propaga a indissociabilidade do binômio educar/cuidar, mais se aprofunda a sua cisão. Por isso, percebi que na afirmação abaixo, de Schmitt, o foco se inverte ao estender a necessidade de 'cuidados" também àqueles momentos que denominamos de "educativos" e não o seu contrário: cuidar para educar.

"[,,,] o cuidado aparece (aqui a pesquisadora se refere à sala com bebês de 4 meses a um ano, onde permaneceu durante oito meses em observação) como um importante elemento constituinte entre bebês e profissionais no espaço coletivo da creche. Como parte do processo educativo, o cuidado constitui-se em todas as ações desse espaço, envolvendo as relações diretas e indiretas entre adultos e crianças. Além de afirmar o aspecto pedagógico das ações de cuidado como parte do planejamento do professor de educação infantil, é mister perceber o cuidado para além dos momentos de alimentação, higiene e sono. Ele está presente, ou deveria estar, em outras ações planejadas pelo professor, como na organização dos espaços acolhedores e convidativos para os encontros entre os bebês, na escolha dos materiais, na entonação de voz e da comunicação do corpo, na postura sensível de auscultar e responder aos pequeninos" (2008, p. 195).

Não termino a reflexão com esta citação. Ao contrário, a discussão está só começando. As ideias vem, as posturas mudam. A gente vai sinalizando...



   

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Santo de casa não faz milagre! Não?

No dia 30 de março de 2012 tive a oportunidade de assistir uma palestra proferida por Ângela Scalabrin Coutinho. Não sabia eu que essa pesquisadora me auxiliaria a defender uma ideia que venho aprofundando à medida que visito salas de Educação Infantil que são compostas por bebês.



"As crianças no interior da creche: a educação e o cuidado nos momentos de sono, higiene e alimentação" é o título de sua Dissertação de Mestrado, defendida no ano de 2002, na Universidade Federal de Santa Catarina e que foca as ações sociais das crianças na creche nos momentos citados no título, segundo a explanação de Schmitt (2008). Inserida durante dez meses num grupo de crianças de 1 a 2 anos, Coutinho pôs-se a observar e a registrar as relações entre as crianças nos momentos de sono, higiene e alimentação. A pesquisadora observou que esses momentos de cuidado estavam desvinculados do contexto pedagógico, pois não eram mencionados nos planejamentos das professoras. Esses momentos eram desenvolvidos de forma automática, seguindo uma rotina institucionalizada, o que alienava sua ação docente e a das crianças das ricas e reiteradas interações entre elas. Coutinho observou, principalmente, que as crianças interagiam segundo significados diversos dos adultos, mas de forma intensa e prazerosa.

A forma repetitiva de executar as ações de cuidado e educação dos adultos observados em contato com as crianças demonstrou, sobretudo, que havia dois jeitos de ser: o jeito das crianças, "dinâmico, diverso, pulsante" e o da instituição, geralmente do adulto: "rotineiro, homogêneo e ritualizado" (2002, p. 72).
Contudo, Coutinho deixa claro que as interações e expressões das crianças nos momentos de sono, higiene e alimentação são criações próprias da cultura infantil, baseadas no mundo cultural e social que as crianças compartilham com outras gerações, que elas buscam na cultura que as cerca e nos bens culturais que a sociedade disponibiliza para elas.

Não é incomum o adulto interpretar as manifestações das crianças com significado de transgressão, desobediência, "bagunça", para usar o termo de Coutinho. O desconhecimento das criações infantis por parte dos adultos reflete no planejamento, que não se debruça sobre os momentos de cuidados.


Tenho me esforçado para entender as escolhas dos/as professores/as de bebês e crianças pequenas que não se perguntam de que é constituído o cuidado, senão de concepções de educação. De que são impregnados os gestos, as ações, as escolhas no dia-a-dia com as crianças de suas turmas senão das crenças e dos valores desses profissionais? A despeito disto Coutinho assegura que os momentos de cuidado deveriam ser pensados, planejados e observados como oportunidade de encontros e trocas entre as crianças e entre adultos e crianças (SCHMITT, 2008, p.48). 

Não falo aqui de santos, casas e milagres mas bem que logo poderíamos nos convencer!

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Silêncio: os bebês estão falando!

Tenho me ocupado com a leitura da Dissertação de Mestrado de Rosinete Valdeci Schmitt na ânsia de compreender os bebês que hoje tanto me convidam a aprender observá-los.
E por que os quero observar?
Porque a linguagem dos bebês é a que mais me emociona atualmente.
Ainda hoje, enquanto caminhava depois do trabalho, passo por uma jovem mãe, sentada no ponto de ônibus entre tantos outros que aguardavam o transporte público. Seu pequeno bebê, embrulhado em uma manta, era chacoalhado numa cadência que só as mães sabem porque o fazem. O bebê, de olhos muito vívidos e abertos, estava atento a observar o tumulto de pessoas indo e vindo, subindo e descendo dos ônibus. Pareceu-me o melhor dos expectadores. Eu vi nesse bebê uma capacidade de apreender da realidade e do seu entorno tanto quanto qualquer outro ser humano que por ali se encontrava, ainda que nós, adultos, sempre coloquemos os bebês como seres imaturos demais para interagir com competência. E foi esta constatação que devo à leitura de Schmitt e que gostaria de alargar a seguir.
"Mas eu não falo a língua deles": as relações sociais de bebês num contexto de educação infantil é o título que Schmitt desenvolve através de pesquisa etnográfica, com quinze bebês de quatro meses a um ano e três meses,  no município de Florianópolis, no ano de 2008.
O principal objetivo da pesquisadora foi conhecer e analisar as relações sociais constituídas com bebês e entre eles num espaço público de educação infantil.
Os resultados apontaram que os bebês são capazes de estabelecer múltiplas relações, envolvendo adultos, outros bebês e crianças maiores, atravessadas, essas relações, das condições materiais e significação desse espaço.
Também apontaram que as ações pedagógicas de cuidado das professoras, além de representarem encontros próximos entre adultos e bebês, proporcionaram, concomitantemente, um tempo e espaço de encontro entre os bebês, de se relacionarem uns com os outros e com o ambiente implicando a necessidade de uma preocupação além da ação direta dos educadores mas também sobre sua ausência/distanciamento frente ao grupo.
Choro, sorrisos, balbucios, risos, sons, palavras, movimentos foram as expressões comunicativas dos bebês, asseguradas segundo processos de desenvolvimento que vão sendo ampliados conforme significados constituídos nas relações coletivas.
Schmitt afirma que as "formas expressivas das crianças não são inatas mas constituídas socialmente na relação com outras pessoas, imbricadas com aspectos culturais, históricos, econômicos, de etnia, de gênero, de geração" (2008, p. 10). Assim percebo o que recomenda a autora, que é preciso estabelecer o diálogo com os bebês e crianças pequenas para perceber o que nos indicam sobre o que são, o que sentem e como constituem suas infâncias no espaço coletivo. Ao mesmo tempo, considerar o bebê e a criança competentes socialmente não minimiza sua condição de dependência dos adultos.
O interessante nesta pesquisa é que ela se enveredou pelo caminho de conhecer os bebês como protagonistas para além daquilo que o adulto propõe. Sua contribuição está na constituição de uma prática pedagógica docente respeitosa quanto aos direitos das crianças.
Quando nos propusermos observar os bebês sem a intenção de descrevê-los mas realmente enxergá-los como pessoas que são, abandonaremos o discurso de como os bebês são e de como devem ser.

domingo, 14 de julho de 2013

Ser professora de bebês: compartilhando reflexões


Preocupa-me, reiteradamente, como professoras de bebês concebem sua atividade profissional. Por um lado, professoras convictas da importância; por outro, professoras desestimuladas pelo não reconhecimento social desta atividade.

 
 
 
Deparei-me com a Dissertação de Mestrado de Fabiana Duarte (UFSC) que pesquisou as dimensões educativas que constituem a especificidade da ação docente de professoras de bebês. A partir desta produção de pesquisa com professoras de bebês na rede pública municipal de Florianópolis, surge a pergunta:


- O que especifica como docência aquilo que fazem professoras de bebês?

Duarte afirma que há uma especificidade na prática docente com bebês que se diferencia de ser professora de crianças maiores. Para Garanhani (2010) ser professora de bebês denota uma docência marcada por relações e que, por serem vivenciadas com bebês, são mais intensas. Dentre as especificidades de ser docente na educação infantil está a compreensão de que toda criança tem um corpo e uma história e que se relaciona com a movimentação de seu corpo e com sua história pessoal.

Garanhani (2010), citada por Duarte, também afirma que ser professora de educação infantil é estar atenta e respeitar as individualidades, as diferenças e as condições que cada criança apresenta na interação com os outros.

Para esclarecer melhor o que marca a docência com bebês, Tristão (2004) e Garanhani (2010) (citados por Duarte) reforçam três pontos sobre a pedagogia que reconhece e está atenta à criança, sua história e sua individualidade:

-  nega professoras e crianças que não podem se encontrar numa relação individualizada e personalizada;

- nega que as pequenas lições têm mais importância do que as brincadeiras de livres descobertas;

- nega tempos e espaços rígidos que podem enfraquecer a espontaneidade das crianças.

Duarte também cita Schmitt (2008). Segundo esta autora, professoras de bebês relacionam-se com os bebês através de enunciados que ultrapassam a linguagem verbal. A forma como a professora organiza os bebês para uma brincadeira, a maneira como ela disponibiliza objetos a sua altura, o contato que ela estabelece durante a troca de fraldas, por exemplo, diz ou não do quanto acredita nas potencialidades de comunicação e de se relacionar dos pequenos.

Ser professora de bebês significa deixar se afetar pela presença deles e afetá-los igualmente com sua presença. Cada professora vai exprimindo o que sente e como sente a presença de seus bebês e como se responsabiliza por eles.

Defendo aqui a ideia de que as professoras podem comunicar ao mundo a importância de seu trabalho com os bebês quando se debruçam a pensar sobre suas ações cotidianas com eles. Isto se dá através do ato de planejar. Planejar para projetar-se para o futuro. Planejar para observar  as peculiaridades de prever ações e intenções para e com os bebês. Planejar para surpreender-se, para renovar-se, planejar para estar viva para os bebês.

Segundo Tristão (2004), as professoras precisam pensar em seus bebês com alguém que tem um corpo a ser cuidado, mas muito mais bebês como atores sociais competentes. Por isso, a necessidade de organizar uma prática docente comprometida com eles. Ao mesmo tempo que a professora interfere no “ser bebê”, os bebês também interferem reciprocamente na constituição do ser professora de bebês.

Tristão (2004) chama atenção sobre a ação docente para com bebês ser constituída de sutilezas. Uma profissão caracterizada pela sutileza é afeita de ações quase imperceptíveis no dia-a-dia. São atitudes próprias das professoras de bebês, necessárias mas de pouca visibilidade.

Outro fator que marca a prática docente com bebês é a comunicação com eles. À medida que o tempo de convívio aumenta, aumentam as formas de comunicação que se vão estabelecendo e estas ficam mais fluentes. O tempo é um aspecto importante na docência da professora de bebês. As crianças pequenas necessitam viver um ritmo próprio, necessitam de mais tempo, tempos longos, como afirma Barbosa (2010). Por isso, uma rotina que engessa os ritmos não combina com bebês. São as ações de cuidado que orientam o cotidiano e esse aspecto peculiar norteia em grande medida a docência com bebês. O cotidiano, segundo Barbosa (2010) é mais abrangente do que a rotina. O cotidiano é um espaço-tempo fundamental para a vida humana, onde há possibilidade de encontrar o inesperado, o improvável, a inovação, o extraordinário. Assim, as atividades de rotina são um dos elementos que integram o cotidiano. Batista (1998) alerta que a estrutura rígida, uniforme e homogeneizada dificulta a vivência dos direitos das crianças em suas múltiplas dimensões.

Não encerrando o assunto, deixo desta feita um apelo às professoras de bebês: a teoria é nosso suporte, a prática nosso norte. A lucidez uma bandeira e a reflexão uma necessidade cotidiana quando se é professora de bebês.   

domingo, 30 de junho de 2013

Cotidianidade e sentido: ruptura para um outro tempo

Muitas vezes já pensei esse pensamento: aquela segunda-feira de manhã, na estação do inverno,
em que quase o dia não amanhece. Parece que a chuva chove no quarto e, nessa penumbra,
temos de levantar, do calor das cobertas extrair as forças e as energias para enfrentar o novo dia.

Aí lembro de um outro ser que levanta junto com esse tumulto gélido. Que enfrenta a vida sem ser
questionado. Que adere aos movimentos dos outros para um dia fazê-los seus.

É o cotidiano que aguarda a vida, numa continuidade que vai por si mesmo, carregando os sujeitos em suas particularidades. Não reivindica ser pensado, esse cotidiano, nem pormenorizado, nem logo significado.
Ontem o cotidiano era liberdade, era lazer. Hoje esse cotidiano se traduz em obrigação e alienação.

E quando tudo estiver organizado por esse cotidiano sem data, crianças estarão nos Centros de Educação Infantil, homens e mulheres estarão em suas frentes de trabalho remontando a inércia do cotidiano engessado, que a chuva e o frio não desfizeram.

Na vivência do cotidiano como continuidade, da vida que se perpetua, na criação de um mundo
sensível e prático, o drama não se reduz ao salário do fim do mês mas ao sentido que ele dá à própria
vida do sujeito.

* Esta reflexão me foi permitida pela leitura da tese de doutorado da professora Graziela Escandiel de Lima, sob título "Cotidiano e trabalho pedagógico na educação de crianças pequenas: produzindo cenários para a formação de pedagogos", defendida em 2010, na Universidade de Santa Maria, RS.
* Este texto é também uma homenagem a todas as crianças que desde muito cedo veem suas vidas desafiadas em colaboração às difíceis jornadas de trabalho de seus pais e mães.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A "rotina" que educa: uma prática de pensar sobre o óbvio


 O banho do bebê, a troca de fraldas, o momento da alimentação, a interação 
mediante o toque, o pegar a criança no colo,
 a música, a comunicação oral, ou seja, a fala, 
a conversa estimulada (linguaguem), o riso e as manifestações 
afetivas não devem se consideradas menores, 
porém fundamentais. 
(SCHULTZ. L. M. J.)*


Ontem conversei com oito professoras de turmas de Berçário. A todas elas contei uma historinha que, se não houvesse mais nenhum outro argumento, serviria de motivo porque ando defendendo, com plena convicção, um formato de planejamento que inclui todos os momentos do dia vividos com um grupo de bebês: da chegada das professoras até o momento em que vão embora.

Às vezes é melhor mesmo fazer o caminho das pedras. 

Há três anos tive o prazer de trabalhar com professoras que muito me ensinaram sobre o trabalho com bebês (por vezes, na contramão do tempo, também é preciso confessar). 
 
Uma das professoras, em especial, foi responsável pela minha primeira grande indignação ao trabalhar pela primeira vez como professora de bebês. A questão residia no que fazíamos com os bebês durante o período em que se encontravam sob nossos "cuidados". Na concepção de minha colega a hora mais importante era a "hora da atividade". Fiquei logo sabedora que se tratava de um momento ímpar, vivido na sala, geralmente, pelo grupo de crianças com suas professoras e que supostamente era muito importante, quase que exclusivamente responsável pelas aprendizagens das crianças. 

Comecei a perceber que por mais que estivéssemos envolvidos em brincadeiras na área externa com as crianças, por mais que o escorregador do parque estivesse sendo o desafio momentâneo, o correto era encerrar, às vezes, abruptamente, aquele momento e ir à sala realizar a "atividade".  Só a "atividade" legitimamente faria a diferença no processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças. A configuração de meu planejamento, logicamente, estava centrado em encontrar a melhor das atividades para cada dia. 

Nos primeiros seis meses de trabalho fiquei convencida de que era inapta para a função de professora de bebês e não poucas vezes tive vontade de abandonar esse trabalho. Havia algo na minha prática e no meu planejamento que eu repudiava pois me parecia desencontrado e lacunar. Por fim, fiz a reflexão e cheguei à conclusão de que era necessário mostrar o que fazíamos com nossas crianças de uma forma transparente e convincente. Passei a planejar todos os momentos "ícones" do cotidiano do Berçário II. Dei às atividades de cuidado o "status" devido: o de ser o próprio ato educativo com bebês.

De reflexão em reflexão, a cada dia estou mais convencida que ninguém mais que o\a pedagogo\a dever gestar e nutrir sua prática pedagógica através do exercício de pensar sobre o óbvio. É no cotidiano de sua atividade que ele encontra as demandas de um planejamento para e com os bebês.

São eles, os bebês, que nos fornecem os elementos sobre os quais refletimos e avançamos no aperfeiçoamento de nossa intervenção.

Os bebês, em suas linguagens diárias, oferecem o conteúdo e a forma do currículo. Sorriem, choram, dormem, comem, engatinham, brincam, ouvem, observam, resmungam, gritam, balbuciam, tocam, acariciam, caminham, arrastam, levantam, caem, sentam, deitam, agarram, seguram, respondem, leem, ignoram, cansam, movem, empurram, amam, apreciam, gesticulam, propagam, exigem e sentem a vida de todos os dias.

Pensar no que os bebês necessitam é o primeiro passo. Conhecê-los, fazê-los nossos personagens mais importantes, descobrir como lhes apetece dormir, comer, brincar, viver a vida que lhes pertence mas que nos pertence educar. Esse poderia ser um bom motivo para planejar.

Quando compreendermos a complexidade que é planejar como receber os bebês, como será alimentar, brincar no chão, trocar-lhes a fralda, ninar para dormir, tocar seu corpo na massagem, lavar suas mãos e rosto, levar para tomar sol, oferecer um chocalho, cantar e bater palmas, fazer caretas e sorrisos... então saberemos porque o pedagogo e não outro profissional está com eles nos Centros de Educação Infantil.

Por outro lado, quem trabalha em turmas de Berçário vai me compreender no que vou afirmar: sabemos o que os bebês querem. Se sabemos, também acharemos uma forma de pensar o que faremos por seu processo de aprendizagem e desenvolvimento no próximo projeto de trabalho que vamos elaborar. O meu desejo é que todas as professoras desejem algo para seu grupo de bebês. Que tal começar pela rotina de cuidados que educa?
 
* O texto de Schultz foi publicado no periódico Educativa, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 287-305, jul,\dez. 2004.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Livros, histórias e faz de conta: uma paixão que pode ser despertada desde que somos bebês

Os estudiosos e os pensadores da área (Magda Soares, Fanny Abramovich, ...), defendem a ideia; os escritores (Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Eva Funari, Tatiana Belink) escrevem livros para nos provar;  as crianças pedem que lhes contemos histórias... o que falta para que nós, professores e professoras, adiramos à ideia?
Quem assistiu à socialização do projeto a seguir (CEJAS, outubro/2012) sabe que a literatura infantil passou a ter em minha vida uma importância crucial. Os livros e as histórias me conectaram às crianças de uma forma sui generis. Às vezes eu tinha a impressão que eu entrava mais nas histórias que inventava do que as próprias crianças. Não que as crianças se mostrassem desinteressadas e sim porque, no fundo, quando o adulto vive o sentido da fantasia, ele já retornou à sua própria necessidade de ouvir histórias.
Aproveito para publicar o projeto, que na ocasião de sua vivência recebeu a valiosa colaboração da minha colega Profª. Adelita. Não o publico, na verdade em seu formato original. Acrescento a ele algo que venho defendendo reiteradamente, que é a inclusão das atividades de cuidado, que prefiro chamar de educação de cuidados.
Percebo ainda olhares céticos de minhas colegas em relação à importância de nós, professoras, prevermos como faremos a educação de cuidados, uma vez que nos parece "óbvia" sua ocorrência. Porém. as coisas mais simples quando concebidas podem ser também as mais complexas na prática. Por isso, todas as pessoas que um dia adentraram uma sala de berçário concordarão que a prática pedagógica das professoras que educam bebês é, nas tarefas educacionais, tão similar em importância quanto educar em qualquer outra idade, ou seja, a vida toda do ser humano.   

Projeto: Comendo sanduíche com a Maricota


Objetivo de ensino:

- Pretendemos, com esta temática, colaborar com a construção de novos conceitos na criança, oferecendo a história “O sanduíche da Maricota” como possibilidade de vivenciar situações reais e de faz-de-conta.

Objetivos de aprendizagem:

- Vivenciar a história “O sanduíche da Maricota” de forma individual e coletiva, participando dos momentos de audição da história com interesse e entusiasmo;

- Participar da confecção do sanduíche da Maricota, observando e tocando nos seus ingredientes, manifestando desejo e concordância nos momentos de degustação;

- Expressar conforto, curiosidade na confecção dos materiais para a criação das galinhas de prato de papelão e com bexigas;

- Demonstrar alegria na interação com os personagens do livro "O sanduíche da Maricota" que serão colados em forma de painel.

Ações pedagógicas:

Chegada: as crianças estarão no portão da nossa sala, esperando-me e darão gritinhos de "bom dia" quando eu adentrar no portão principal do Centro. Pretendo chegar, durante a vigência deste projeto, como nos demais dias: cumprimentarei cada criança, dando-lhe a mão, sorrindo para ela e sempre que eu puder, se houver a menor chance, eu ainda a abraçarei com emoção. Em seguida, como já vem ocorrendo de uns tempos para cá, perguntarei se querem que eu conte uma história e eu sei que elas me apoiarão. Pegarei um livro na prateleira e todas já estarão sentadas no colchão. Sei que haverá brigas, briguinhas e brigonas, daquelas que vão me tirar o fôlego. Mas depois que a paz reinar, continuarei contando a história como se não fosse nada. Sei que terei de parar várias vezes para receber crianças que virão depois das oito horas. Mas sei, também, que quase nenhuma delas vai se dispersar, porque eu direi assim: - Muito bem, a prô vai receber nosso amiguinho, colocar sua mochila aqui em cima no parapeito da janela do trocador e vamos continuar nossa história. Assim funcionará de certa forma quase em todos os dias. Sei que nos interlúdios de uma história e outra terei vontade de cantar com e para as crianças e assim farei. Também poderei um dia me sentir cansada e preferirei sentar com as crianças no chão, brincando com elas e ouvindo-as expressarem-se em seu repertório oral. Sei que farei ainda outras coisas nesse momento que aqui eu denomino de chegada. Para o imprevisto, terei a saída de registrar em relatório, previsto para depois da ação vivida com as crianças.
Café da manhã: esta refeição será a primeira do dia. Teremos de ir ao refeitório mas antes ajuntaremos os brinquedos espalhados no chão da sala e, para isso, solicitaremos a ajuda das crianças. Haverá as que imediatamente concordarão com a tarefa; haverá outras que, ao invés de colocar os brinquedos no local indicado, segurarão os brinquedos ou jogarão de volta, ao chão, os que já estavam armazenados. Enfim, esta hora, às vezes, necessita de uma intervenção bem "pedagógica": a do convencimento. Poderemos observar comportamentos variados. Nós, professoras, elogiaremos os bons ajudantes, solicitaremos os que não querem colaborar... até que tudo esteja no lugar. Depois chegará a hora de abrir o portão e todos seguirão. Algumas crianças irão de mãos dadas com as professoras. Levaremos os que tendem a se dispersar pelo caminho. Talvez a dispersão tenha a ver com a autonomia das crianças dessa idade. Porém, não quereremos nos afastar delas, uma vez que na hora que saem do nosso campo de visão, poderão ter adentrado em ambientes não propícios para o momento. As crianças do Berçário II já alcançaram a estatura para segurar maçanetas e abrir portas.  É claro que no trajeto ao refeitório haverá outros desafios para as professoras: fazer com que todos cheguem juntos. O café da manhã, às vezes, parece ser a refeição menos esperada pelas crianças. Vamos ter de incentivá-las a querer experimentar o que será oferecido. Rodeando-as na mesa, falaremos do alimento, talvez tenhamos que experimentá-lo para que fiquem curiosas. Se forem oferecidas frutas, algumas crianças poderão rejeitar, já percebemos isso outras vezes. É preciso fazer um bom marketing das frutas para as crianças. Os hábitos alimentares que incluem frutas no cardápio do café da manhã são salutares. Crianças tendem a imitar mais do que fazer o que os adultos dizem para fazer.
Almoço: quando se aproxima a hora do almoço, metade do dia já se terá passado para algumas crianças e outras ainda permanecerão até mais um tanto de horas até a chegada de um membro da família para buscá-las. A hora do almoço é uma das atividades mais importantes do cotidiano dos bebês. Muitas aprendizagens são realizadas, algumas das quais pela oportunidade de repetir as ações. Novamente as crianças farão o trajeto, para algumas, cheio de aventuras. Ao chegarem próximos da mesa, serão ajudadas a tomar seus lugares. Geralmente prestamos atenção quem senta perto de quem, pois algumas crianças se mostram mais voluntariosas na proximidade, seja por ciúme, seja porque simplesmente não se sentem confortáveis de sentarem-se tão próximas umas das outras. As professoras vão reunindo dados advindos da observação diária das crianças e se utilizam do conhecimento sobre as crianças para fazerem as intervenções nos conflitos. O prato de comida será oferecido às crianças junto com a colher e como sempre acontece, elas logo começam a levar os alimentos à boca. Necessitamos ficar atentas a cada movimento.Será preciso observar a quantidade de comida que cada criança ingerirá, pois pela pouca idade e por estarem em processo de manejar a colher com habilidade, muitas vezes o alimento é derramado fora do prato, no chão, na roupa e bem pouco onde deve chegar: à boca. O almoço contém os alimentos energéticos e construtores do organismo humano, por isso a necessidade da atenção total das professoras. Será indicado que o refeitório esteja relativamente calmo e silencioso, isso ajudará as crianças a comer com mais apetite, sem agitação ou pressa.
Café da tarde: o café da tarde acontecerá, como sempre, como uma atividade do cotidiano, com horário previamente definido. Depois de tirar uma soneca, as crianças geralmente estão de bom humor, revigoradas e assim, tomar um café gostoso é muito bem-vindo. As crianças de período vespertino estarão juntas às demais que vieram pela manhã. As professoras vão distribuir os alimentos, fazendo menção à variedade do cardápio. Assim como nas demais refeições do dia, as crianças serão orientadas a cuidar para que não esparramem muito alimento na mesa e esta insistência faz com que depois, nos anos seguintes de frequência à educação infantil, mostre-nos que elas conhecem os bons modos à mesa e possam demonstrar que o processo civilizatório foi bem iniciado. Não podemos esquecer que nenhuma criança se educa a ela mesma. Os adultos, pais, mães, professoras e demais pessoas que a educam são, em grande medida, o modelo que vão imitar. Por isso, o psiquiatra Ivan Capelatto insiste na ideia de disseminar a ideia de Winnicott, de que uma criança precisa de um cuidador "suficientemente" bom, isto é, alguém que queira ser cuidador lúcido, consciente de sua responsabilidade e de sua tarefa de "ser" para essa criança.
Soninho: a psicóloga Gabriela Monea, em entrevista cedida à jornalista Flavia Werlang, afirma que uma criança entre um e três anos necessita de doze a quinze horas de sono por dia. Se ela dormir de dez a doze horas por noite, restarão, pelo menos, mais duas ou três horas para o ciclo se tornar completo. Por isso, o soninho nos Centros de Educação Infantil é um momento muito importante da rotina vivida pelas crianças. O déficit de horas de sono para a criança acarreta dificuldade na aprendizagem e incide no comportamento, fazendo com que ela responda com irritação aos estímulos do ambiente, além de torná-la impaciente e agitada. O sono tranquilo recupera as energias e devolve o bom humor à criança. A hora do soninho receberá, assim, especial atenção das professoras. Um colchão macio, uma coberta quentinha, um carinho nas crianças que têm desconforto na hora de pegar no sono, assim se conceberá a hora de dormir. Cada criança terá seu ritmo respeitado, pois em suas casas há uma diversidade de hábitos e costumes. A criança necessita de um tempo para se dar conta que no Centro há uma sequência de atividades que estão lá para que ela possa se sentir segura. Se até nós, adultos, sentimos insegurança quando adentramos um novo ambiente, o que esperar da criança que está apenas começando a conhecer o mundo em que vive.  

Brincadeiras livres no pátio ou na área coberta: dentre as atividades de maior relevância no dia a dia de nosso Centro estão as brincadeiras na área externa. As crianças serão levadas à área externa para que brinquem umas com as outras, com as motocas disponíveis, com potinhos recicláveis, com bolas, com bonecas, com balões e o que surgir, segundo as vontades que as crianças expressarem. Ficaremos atentas às brincadeiras das crianças, às interações que elas estabelecerem, às atitudes em relação à presença de outros adultos, além de nós, professoras. Um olhar atento sobre a brincadeira revela que : "No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo, é como se ela fosse maior do que é na realidade" (Vigotsky). Durante as brincadeiras poderemos identificar quais linguagens predominam no grupo, como as crianças vão se apropriando do espaço, como vão superando movimentos amplos e finos, como se relacionam no compartilhamento de objetos e de brinquedos.


 Troca de fraldas, roupas, higiene das mãos e ida ao banheiro: as crianças entre um e dois anos começam a perceber o que vestem. Quando são convidadas a trocar as fraldas, as roupas ou a fazer a higiene das mãos elas podem concordar tanto quanto se negar a nos acompanhar até o trocador. Com o avançar dos dias do ano, as crianças vão percebendo que atividades são realizadas no trocador e, às vezes, elas não se interessam muito em parar a brincadeira. Como essa reação faz parte desta faixa etária, tomaremos o cuidado para não tornar esse momento desprazeroso, a ponto de termos sempre uma criança contrariada e um adulto tendo que lutar contra seu próprio sistema límbico que se degladia com o da criança. Haveremos de achar o meio termo. Tenho como saída propor algo que a criança queira trocar por aquilo que estava fazendo. Aqueles livros que geralmente não podemos dar a elas em grupo e que geram conflitos podem ser uma boa saída. No trocador, então, enquanto trocamos sua fralda, ela poderá se entreter com aquele livro tão cobiçado. Na hora de lavar as mãos, já percebemos, as crianças querem manipular o frasco com o sabonete líquido. Essa autonomia e com nossa ajuda, será um bom motivo para que lavem as mãos. Também, no trocador, poderemos explorar os pertences da mochila. Vamos oralizar claramente as ações que serão feitas durante a troca de roupas e fraldas.
Escovação de dentes: as crianças do Berçário II estão prontas a iniciar a escovação de dentes desde o princípio do ano. Temos certeza que a higiene será deficiente mas os ganhos nas habilidades de manuseio e na compreensão do sentido e da necessidade, inestimável. A escovação de dentes vem sendo organizada desde o começo da seguinte forma: as crianças são direcionadas a sentarem-se depois da refeição umas próximas às outras. Uma das professoras distribui segura as escovas e o creme dental. Uma a uma as escovas são entregues às crianças, chamando-as pelo nome. Dizer o nome completo da criança nesse momento é algo fantástico. Tornamos esse momento tão "pedagógico" quanto qualquer outro do cotidiano. As crianças ficam sabendo algo com o qual lidarão a vida toda: as pessoas têm nome e sobrenome. Evitamos, assim, apelidos indesejáveis e sobretudo, teremos como expressar nosso respeito pela identidade familiar delas. Ainda que o motivo exposto seja suficiente, escovar os dentes desta forma poderá nos dar a oportunidade de, aos poucos, conversar sobre o que comemos e do porquê necessitamos fazer a higiene dos dentes. Cantaremos a  música "Meus dentinhos".  
Atividades relacionadas à temática: as atividades a seguir ocupam em tempo e grau de importância o mesmo lugar que as atividades que são desenvolvidas para atender as necessidades básicas das crianças. Não se pode imaginar que uma criança possa esperar, ao pedir um copo d'água, que nós terminemos uma tarefa como as abaixo relacionadas. Por isso, parece-me indiscutível que um grupo de crianças esteja em condições de participar da audição de uma história ou de uma pintura com tinta guache sem que suas necessidades estejam minimamente satisfeitas. É claro que sempre haverá percalços, mas...
- Como o grupo de crianças do Berçário II são grandes apreciadores de livros e histórias da literatura infantil, contaremos a elas que temos uma novidade, um novo livro: “O Sanduíche da Maricota”. Contar a história com o auxílio das ilustrações.

- Fotocopiar o livro e recortar as ilustrações. Fazer um painel com a sequência das gravuras, colar na altura das crianças, de modo que elas possam apontar, falar, fazer observações. As professoras poderão explorar o painel com perguntas relacionadas aos personagens e sobre os acontecimentos da história. Observar como as crianças se relacionam com esse enredo. Utilizar as reações observadas para provocar perguntas nas crianças e a expressão de linguagens como a oral, gestual, musical e a pictórica.

- Confeccionar com as crianças duas galinhas, a partir de prato de papelão, convidando-as as ilustrarem e carimbarem as mãos e os dedos com guache. Expor na sala o material, nominando uma a uma, de modo que possam reconhecer sua galinha depois de pronta.

- Encher duas bexigas e dizer as crianças que transformaremos esses dois balões cheios numa galinha, como a Maricota. Convidar as crianças a colar tiras de papel de revista nos balões untados com cola, de modo a fazer pelo menos duas camadas. Depois de tudo seco, emendar os dois balões com cola quente, acrescentar penas para as asas e o rabo, fazer bico, crista e pernas. Todos os acréscimos serão feitos na presença das crianças, de modo que elas possam acompanhar a confecção, até a versão final da galinha. Utilizar a galinha no dia da confecção do sanduíche da Maricota.

- Convidar as crianças para a preparação de um sanduíche, como o da Maricota. Apresentar os ingredientes: alface, tomate, queijo, presunto, milho, ervilha, ovo, pão, margarina e pão Degustar o sanduíche com a turma, comentando o sabor dos ingredientes. Observar o envolvimento das crianças.