sábado, 12 de outubro de 2013

O dia, a semana, o ano da criança: entre o paradoxo e as possibilidades

Desde os meus primeiros anos na escola, não na educação infantil, a proximidade do mês de outubro me animava. Alguma atividade diferente ia acontecer. Havia os famosos piqueniques, quando abandonávamos o pátio da escola e íamos nos divertir em algum lugar aprazível, com lanche preparado para a ocasião e brincadeiras de molhar os pés no riacho do pasto onde ficávamos longas horas a aproveitar. Boas lembranças... e, quando encontro alguém dessa época, que experimentou piqueniques como aqueles, é quase certo que as memórias serão compartilhadas, sempre emocionados pelo prazer que nos ofereceram.

Por que lembramos dessas ocasiões mesmo depois de 20, 30 anos transcorridos? O que têm essas vivências de tão perenes que não as esquecemos? Para que serviam esses dias passados fora das salas de aula, sem, aparentemente, muita conexão com os  conteúdos do currículo escolar?  

Outros tempos vieram. Inimaginável para muitas crianças de hoje participar de momentos como aqueles. Não sei se as crianças sabem o que é um piquenique com a turminha da escola mas  essa experiência foi substituída por outra, que, convenhamos, não sei se pode ser denominada de experiência: as crianças de agora ganham presentes no dia da criança. O comércio agradece.  
Desde 1988, quando pela Constituição Federal a criança passou a ser considerada um sujeito de direitos (os tais piqueniques aconteceram antes de 1988), as transformações da mentalidade dos adultos em relação à criança e à infância pouco ascenderam, instalando um paradoxo: a criança cada vez mais considerada, ao lado de uma criança cada vez mais isolada do convívio social. Por isso Sarmento e Pinto (1997), inspirados em Qvortrup (1995), destacam aspectos que podem nos fazer refletir sobre a forma como as crianças são compreendidas a partir da ótica dos adultos, o que quase autoriza a dizer que, realmente, devemos muito mais do que presentes às crianças. Os adultos, inauguram, assim, um grande paradoxo pelo fato de:

desejarem e gostarem das crianças, apesar de “produzirem” cada vez menos crianças; de cada vez disporem de menos tempo e espaço para elas e de cada vez mais viverem separadamente seu cotidiano; de valorizarem a espontaneidade das crianças, mas cada vez mais estas serem submetidas às regras das instituições; de postularem que deve ser dada prioridade às crianças, mas cada vez mais as decisões políticas e econômicas que envolvem a vida das crianças são tomadas sem as terem em conta; de concordarem que deve ser dada às crianças a melhor iniciação à vida, ao mesmo tempo em que estas permanecem longamente afastadas da vida social; de que devem ser educadas para a liberdade e para a democracia, ao mesmo tempo em que as organizações sociais dos serviços para a infância se assentem no controle e na disciplina; no reconhecimento do valor atribuído às escolas pela sociedade, sem que estas reconheçam o papel da criança na produção do conhecimento.*  


Quero agora voltar meu olhar para a educação dos bebês e das crianças pequenas, que não fazem piqueniques e nem se sentem como as crianças da escola fundamental, mas que compartilham grande parte de suas vidas com adultos e outras crianças e para as quais as atenções se voltaram esta semana de modo especial. As crianças da educação infantil compartilham com as crianças maiores o paradoxo levantado por Sarmento e Pinto. Por outro lado, levantam a hipótese de que há mais e outras possibilidades de estarem elas em pleno uso de seus direitos se os adultos começarem a ampliar sua visão sobre o mundo infantil e as culturas infantis. Se o dia da criança, a semana da criança forem expandidas para ano da criança (todos os anos), certamente haverá não só piqueniques em outubro mas vivências intensas o ano todo, com encontros de crianças de diferentes idades e  turmas, interações com professoras de outras turmas, com a presença de adultos que cantam, dançam e fazem dramatizações constantemente, com planejamento coletivo e principalmente, alegria no semblante do adulto. Do adulto? Sim, de um adulto mais leve, que pode proporcionar intervenções constantes pois vê crianças em pleno gozo do seu direito de ser criança.




 Parabéns a todos os adultos que conseguirem fazer o ano inteiro ser da criança.  


* Excerto extraído da tese de doutorado de Leila Lira Peters, sob o título: "Brincar para quê? Escola é lugar de aprender! Estudo de caso de uma brinquedoteca no contexto escolar". UFSC, 2009, p. 17.


Este texto foi inspirado por minha amiga Cármen, que, com sua sensibilidade e atenção, permitiu-me aprofundar esta reflexão.


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Histórias sobre o bebê que fui

Considero ínfimo meu tempo de experiência com bebês e crianças pequenas. Mas não é nada insignificante a quantidade de mudanças que ocorreram em mim a respeito do trabalho como professora de bebês nos últimos meses, principalmente quando me deparo com um convite à reflexão como faz Malaguzzi (1994) nesta passagem:

"Existem cem imagens diferentes de criança. Cada um de nós tem em seu interior uma imagem de criança que orienta sua relação com ela. Essa teoria, em nosso interior, nos leva a um comportamento de diferentes maneiras: nos orienta quando falamos com a criança, quando escutamos a criança, quando observamos a criança. É muito difícil para nós atuar de foma contrária a esta imagem interna".  

Grande parte inconsciente, a forma como eu fui bebê ainda está em mim, assim como a forma que minha mãe educou seu bebê (eu).

Munha mãe contava, com grande orgulho, duas passagens. A primeira aconteceu quando eu tinha mais ou menos nove meses e já ficava perfeitamente em pé, se apoiada. Uma amiga de minha mãe parou, um dia, de carro, em frente a nossa casa e me convidou, aos nove meses, para um passeio. Lá fui eu, de pé sobre o acento do carro, que ainda era daqueles inteiriços, afinal isto já faz muito tempo! Minha mãe contava que eu voltei do passeio, depois de mais de duas horas, sem ter feio xixi na calcinha. (Pasmem, aos nove meses eu já estava sem fraldas!) A amiga de minha mãe tinha me segurado para fazer xixi, como faziam as avós há muito tempo.

A segunda passagem que ouvi inúmeras vezes sobre meu "ser bebê" foi a do martelo. Na casa acoplada à escola em que nós morávamos, havia um janelão que ia até o chão. As mulheres da comunidade, impressionadíssimas, perguntavam a minha mãe como sua filhinha, tão pequena, ainda não quebrara o vidro da tal janela. Satisfeita e conclusiva, minha mãe respondia: "é que eu não dou um martelo na mão dela!"

Essas imagens são prevalentes e interferem, como fatos memoráveis, em minhas concepções a respeito de bebês e crianças pequenas. E novas perguntas surgem da reflexão que a memória me suscita: 
- O que faço com minhas memórias?
- Como me constituí através dessas memórias e até que ponto elas me constroem professora de bebês?
- Como me humanizo através de minhas memórias para ser uma adulta mais consciente de seu papel como professora de bebês?
- O que quero para os bebês na sociedade atual?
- Os bebês de hoje se parecem com o bebê que fui?
- Que concepções orientam práticas que veem os bebês como atores sociais competentes, autônomos, capazes, protagonistas e independentes?

Sinalizo algo que não posso mais ocultar: responda-me estas perguntas e dir-te-ei se acreditas que há  infâncias e crianças. 



terça-feira, 1 de outubro de 2013

A música estava lá mas o silêncio falou mais alto

Aruna Noal Correa, logo nas primeiras páginas de sua tese de doutorado escreve assim: "[...] somos aquilo que vivemos, somos nossas experiências, positivas ou negativas". Este pensamento consta em sua tese, que recebeu o título de "Bebês produzem música? O brincar musical de bebês em berçário", defendida, neste ano, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Maria Carmen Barbosa. (Hora dessas dispenso a formalidade e passo a chamá-la de uma vez por todas de "Lica" pois ando me achando já íntima de suas ideias, de sua perspicácia e conhecimento a respeito de bebês). 

Correa investiga a competência sonoro-musical de bebês e hipotetiza, baseada nas afirmações de Schafer (2001), que "se os bebês tiverem contato com a música, de forma mais instigante, que trabalhe a curiosidade musical no seu cotidiano, quem sabe possam vir a ser diferentes daqueles bebês que foram os adultos de hoje. Adultos esses que, como eu, ou você deixam de escutar a música ou a paisagem sonora que entra por nossa janela, o tempo todo, sem que a reparemos" (Correa, 2013, p. 19).

Pois então...

Na minha casa sempre houve música. Não fui um bebê que se dividiu entre casa e Centro de Educação Infantil. Lembro-me, sim, das babás que me cuidaram enquanto minha mãe trabalhava como professora. Ela tocava acordeon e cantava muito e sempre. Ensaiava cantos líricos com o pastor e havia uma promessa nesse ramo em outro país, que ela, na verdade, nunca perseguiu como um sonho a realizar.

O que minha mãe fazia para compensar o que a vida não podia lhe proporcionar, uma vez que o casamento já lhe incumbia de duas filhas, foi ser uma professora apaixonada por música. Não havia dia em que cantar faltasse em sua sala de aula. Utilizava-se do acordeon, inclusive, o que somava muito mais emoção aos momentos de canto com seus alunos.

Esta tese de doutoramento de Correa alargou meu olhar sobre o que significa a presença da música nos berçários. Aruna (2013, p. 52) cita John Cage que sinaliza: "Música é sons, sons a nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concerto." Os autores mencionados me auxiliaram a compreender, principalmente Brito (2003, p. 35), que "[...] o processo de musicalização dos bebês e crianças começa espontaneamente, de forma intuitiva, por meio do contato com toda a variedade de sons do cotidiano, incluindo aí a presença da música".

Por esse critério, fui um bebê privilegiado. Tomava, certamente, contato com os sons do mundo e sobretudo, com a música que minha mãe cantava ou tocava no seu acordeon, ou as duas coisas juntas. É claro que isto não me tornou uma exímia em música. Sequer domino algum instrumento musical. Defendo, apenas, que a presença da música nos berçários se caracteriza como uma brincadeira do bebê, fazendo os primeiros sons, as primeiras manifestações sonoro-musicais como uma de suas linguagens.

Sobretudo, nós, adultos, precisamos entender, como afirma Correa (2013, p.22) que música não é sempre aquela que a televisão ou o aparelho de som traz. E, esta sensibilidade precisa ser apresentada de outra forma [...]". Bem como, segundo Ilari (2006, p. 294), "[..] não há qualquer garantia de que as experiências musicais tornem o bebê um ser mais inteligente". Assim, o objetivo de fazer/oferecer o contato com música aos bebês para além do brincar sonoro-musical que o bebê já produz seria ter em mente que "[...] o princípio é a experiência com sons" argumenta Barulhar de Lino (2008, p. 24).

Em meu caso particular, fui um bebê exposto à música e em minha memória se inscreveu um gosto, hoje traduzido na certeza de que a harmonia dos sons sensibiliza bebês até quando estamos fazendo o som do silêncio profundo.