quinta-feira, 9 de abril de 2015

A menina que aprendeu o segredo da porta

Estava sentada nas cadeiras de uma instituição bancária esperando a minha vez de ser atendida. Próximo de mim encontravam-se um homem, uma mulher e uma menina (de uns três anos, mais ou menos). Acompanhei-os com o olhar ao saírem pela porta giratória e ouvi um riso (dos adultos, acho, pais da criança) quando a menina, ao invés de empurrar a porta em sentido horário para sair, ela o fez ao contrário. A mãe a corrigiu: - Não, filhinha, é para o outro lado. A menina mudou o sentido, empurrando a porta novamente, agora ajudada pela mãe. 

Fiquei pensando nesse gesto criado pela humanidade ao longo da história - o de ensinar às gerações mais jovens de como as coisas da cultura funcionam - tão natural para nós, quando, na verdade, deveria nos assombrar sempre de novo. 

Professores e professoras, profissionais destacados para fazer a transição do saber acumulado às mãos das novas gerações têm de se admirar mais e mais com a arte de ensinar o que sabem, uma vez que estão incumbidos a exercer esse papel "intencionalmente" e de fazê-lo bem feito e sem desculpas, quaisquer que sejam elas. 

Se nós, profissionais da educação, acreditamos que esse processo deve ser sistematicamente planejado e organizado, não é difícil compreender a teoria histórico-cultural pois ela deseja esclarecer exatamente como isso se dá para cada novo integrante da sociedade. 

No caso das intervenções cotidianas é possível defender que o lugar ocupado pela criança nas relações sociais de que participa é força motivadora do seu desenvolvimento. Esse lugar é determinado pelas relações que os adultos estabelecem com ela. A "menina do banco" acompanhava os pais numa atividade cotidiana. Mas essa ocasião é muito importante para ela. As crianças não vivem num mundo à parte, já dizia Zilma de Oliveira. Os gestos cotidianos dos adultos são caracterizados como "modelo" para a criança de como nós nos tornamos seres humanos, partícipes das atividades criadas pela cultura. Nas instituições da pequena infância o processo é o mesmo, com a diferença de que lá o adulto tem uma formação específica para exercer esse papel, desenvolvendo-o por intermédio de ações planejadas para alcançar uma finalidade prevista intencionalmente.

Fica muito fácil compreender o que significa a ideia de que a Educação Infantil é complementar à família. Ora, para crianças pré-escolares (quer dizer, que frequentam a etapa anterior da escola), os adultos são potencialmente convocados a orientar as aprendizagens e nisto se empenham como atividade profissional, para a qual estudaram. Entre zero e seis anos, o mundo se abre para a criança com intensidade muito maior do que qualquer outro período em sua vida.

A presença da criança junto aos pais no banco pode significar que a criança construa, em contato com as capacidades, as aptidões e as habilidades que estes já desenvolveram, uma oportunidade de reproduzir para si  essas características, uma vez que os novos integrantes da sociedade relacionam-se com o mundo segundo suas condições concretas de vida e de educação.

Muitos profissionais da educação acreditam que a etapa da Educação Infantil tenha que se pautar nos objetivos relacionados ao trabalho com conteúdos como no Ensino Fundamental. Essa crença é oriunda, em parte, da situação em que a educação de crianças de 0 a 5 anos nasceu: dividida em assistencialista e escolarizante.

Ora, o que mais fará a Educação Infantil além de ensinar?

A questão chama para a discussão: por que não temos então a nomenclatura "Ensino Infantil"?

A Educação Infantil se relaciona diferentemente, pela sua especificidade que não é da etapa do ensino, com a formação da criança pequena em sua humanidade. As características humanas que almejamos, como alerta Marx (1962), todas as relações humanas com o mundo: a visão, o olfato, o gosto, o tato, o pensamento, a contemplação, o sentimento, a vontade, a atividade, o amor, enfim todos os órgãos da sua individualidade, são produtos da história, resultam da apropriação da realidade humana (MELLO, 1999). Logo, é necessária uma rica experiência desde o nascimento da criança: de contato com a natureza, com as outras pessoas e com a cultura acumulada pela humanidade ao longo da história. Segundo Mello, esse contato provoca no cérebro da criança as ligações neurais que criam o desenvolvimento da consciência e logo o desenvolvimento infantil.

Ana Lúcia Goulart de Faria* descreve de forma elucidativa o papel das instituições da pequena infância como um lugar onde o profissional vai trazer para as crianças os ambientes de vida num contexto educativo. Não vai dar aula, mas desorganizar o tempo e o espaço do mundo adulto, organizando-os para que as crianças produzam as culturas infantis, para que as crianças sejam crianças, construindo assim as dimensões humanas*.

Para compreender a lógica da construção da nossa humanidade por meio da cultura é preciso acessar a tese central de Vigotski e seus colaboradores que contradiz a concepção de que a criança já nasce com um conjunto de potencialidades inatas que as condições de vida e educação vão ajudar a desenvolver. No começo de nossa existência, a humanidade está externa a nós. Ao longo do processo de apropriação da cultura ao qual seremos expostos e com o qual tivermos contato, tornar-nos-emos seres humanos. Daí a importância de vivermos, desde bebês, num ambiente rico em objetos e instrumentos da cultura e com adultos dispostos mediar nossa relação com ele.

De qualquer forma é preciso que o educador identifique os elementos culturais que precisam ser assimilados pelas crianças para que elas desenvolvam ao máximo as aptidões, as capacidades, e as habilidades criadas ao longo da história pelas gerações antecedentes e descubra as formas adequadas de fazê-lo.

Assim, de vez em quando é preciso perguntar como crianças continuam a aprender o segredo de abrir as portas.


* Ana Lúcia Goulart de Faria foi orientadora de Doutorado da profª. Drª. Maria Carmen Barbosa.
* Esse pensamento encontra-se na obra "O mundo da escrita no universo da pequena infância", organizada por Faria e Mello (2005, p. 128).

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