domingo, 19 de abril de 2015

Planejamento e docência na educação infantil: um retrato que deve ser colorido

Ontem deixei-me afetar pela fala de um professor que aludia à necessidade de estudar, pesquisar e ler incansavelmente se quisermos ficar sabendo sobre o Continente Africano, como local geográfico que remonta a história de todos nós. Dizia ele que se encontrava há vinte e cinco anos nesse processo e ainda era precária sua formação para falar aos estudantes sobre o assunto.

Fiquei pensando na história da educação da criança de 0 a 5 anos no Brasil e senti-me mais confortável, uma vez que ela é muito recente. Apesar da contemporaneidade dos estudos sobre a educação infantil como primeira etapa da Educação Básica (leia-se LDB/96), não podemos nos alijar da responsabilidade como co-produtores dessa história, ignorando a urgência de nos colocarmos como os maiores interessados nos estudos sobre as transformações históricas da concepção de criança/infância. Para quem não atenta a esse detalhe, é a partir dessa concepção que delineamos nossa prática.

A afirmação acima tem por base minha própria história no magistério. As concepções que me conduziram nesses anos todos determinaram minhas escolhas para as crianças, mas eu não sabia. Somente quando fui tocada pela Teoria Histórico-Cultural passei a refletir sobre como minha concepção de criança influenciava minha prática.

Há profissionais que acreditam que mudar de ideia sobre algo é motivo de constrangimento. Não é, não. Grandes pensadores, no decorrer de sua vida dedicada a pesquisas em busca de teorias, foram capazes de dizer que mudaram de ideia. Um deles foi Sigmund Freud.

Nesse sentido, quero refletir sobre um texto que nos encaminha (mais um) a tomar em nossas mãos a responsabilidade sobre o que oferecemos às crianças cotidianamente. É o texto de Maria Cecília Braz Ribeiro de Souza e Luíza Franco Duarte*, intitulado "Do improviso à intencionalidade na educação infantil: debate de concepções".

O texto convida a parar para analisar quais são nossas intenções ao escolher as atividades e os materiais com que se desenvolverá nossa prática pedagógica. Enseja que a Teoria Histórico-Cultural pode contribuir de modo esclarecedor em relação ao que desejamos para a infância, através da compreensão do que é uma educação que objetiva a humanização das novas gerações. As intenções que subjazem às nossas escolhas revelam como oportunizamos as vivências no ambiente, o encontro entre as crianças e as linguagens que suscitam quando crianças e adultos convivem num ambiente pleno de possibilidades de expressão nas diferentes linguagens.

As autoras citam Mello (2006, p. 199) para destacar três pontos fundamentais que justifica a adoção da Teoria Histórico-Cultural a embasar práticas pedagógicas com intencionalidade:
- educação como um processo de humanização;
- desenvolvimento como produto do acesso social e intencionalmente organizado à cultura;
- papel do educador como essencial e sempre colaborativo.

Como cada um desses aspectos organiza nossas escolhas para o trabalho com as crianças?

As crianças, em primeiro lugar, contam com a certeza de que os profissionais da educação, geração de adultos que possui formação em Pedagogia, que tem o hábito de se atualizar por isso lê e se aperfeiçoa constantemente e que têm como ferramenta de trabalho a reflexão sobre suas práticas, estejam aptos a "cuidar" para que chegue a elas o melhor da cultura produzida pela humanidade. Esses educadores entendem que a educação infantil é um processo de humanização.

Em segundo lugar, que tenham compreendido que o ofício docente exige que se planifiquem sistematicamente as ações que serão realizadas junto às crianças. Quero ressaltar que não se trata de elaborar um plano de trabalho que exclui a participação das crianças na tomada das decisões ou para excluir pelo quê elas estão curiosas e mobilizadas. Contar com a participação das crianças é um dos passos que se prevê no planejamento. As crianças, quando compreendidas em sua forma própria de produzir saberes e cultura, são reconhecidas como protagonistas nas escolhas do que irão aprender.

Em terceiro lugar, que os profissionais levem em consideração que o planejamento das práticas pedagógicas, que incluem o encontro de crianças de várias idades, caracterizem-se como ações muitas das quais pensadas no coletivo do grupo de adultos.

E finalmente, e não menos importante, que os profissionais tenham a perspicácia de notar quais conhecimentos do patrimônio cultural da humanidade, seja tecnológico, ambiental, científico, artístico, será importante trabalhar com as crianças.

O texto de Souza e Duarte é fundante para compreender como as ações educativas exigem intencionalidade pedagógica. Aliás, o trabalho que se pauta nos conhecimentos do senso comum (importantíssimo para levar a cabo o processo de humanização também) não é suficiente para nortear nossas práticas docentes. O que me leva à afirmação não foi senão o contato com a Teoria Histórico-Cultural. Antes tarde do que nunca.  



* Membros do grupo de estudos MEDIAR - Grupo de estudos e pesquisas em práticas educativas, de Foz do Iguaçu, Paraná.   

terça-feira, 14 de abril de 2015

Leitura de mundo: leitura da palavra

No ano de 2005, Ana Lúcia Goulart de Faria e Suely Amaral Mello organizaram uma pequena obra (pequena em tamanho, grande em importância) sob o título "O mundo da escrita no universo da pequena infância" e na qual encontra-se o texto "Letramento e Alfabetização - implicações para a educação infantil" de Luiz Percival Leme Britto. Apesar de dez anos passados da data da publicação, o texto de Britto está absurdamente à frente da concepção com que nós, profissionais da educação infantil, concebemos o processo de inserção à linguagem escrita das crianças. 

Britto se indaga no texto se a atualização e a incorporação dos novos conceitos de letramento e alfabetização nas práticas pedagógicas implicaram modificações no dilema que enfrenta a educação infantil sobre apresentar ou não formalmente/intencionalmente o código escrito. O autor discorre sobre as origens de ambos os termos - alfabetização e letramento - e cita uma das máximas de Paulo Freire (1982). Esse educador "[...] insistia que a leitura de mundo precede a leitura das palavras, sugerindo com isso que a aprendizagem da escrita só faria sentido se vivenciada pelo sujeito e se tivesse significado para ele" (apud Britto, 2005, p.8). Ainda nessa linha de discussão e reflexão sobre como temos nos relacionado com nosso próprio processo de alfabetização, acrescenta: "a aprendizagem da leitura e da escrita não se resume à aprendizagem do manuseio do código" (idem).

Para Britto, seguindo o pensamento de Soares, o termo alfabetização parece estar fortemente vinculado à aprendizagem das primeiras letras, fazendo alguns autores buscarem uma conceituação que expressasse a diferença entre esse processo e as formas de inserção no mundo da cultura (p. 9). Brito dá ênfase à definição de Soares (1998, p. 18):

Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar e 
aprender a ler e escrever: o estado ou a condição 
que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita [...]. 
Já alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu
 a ler e escrever, não aquele que adquiriu o estado 
ou a condição de quem se apropriou da escrita, 
incorporando as práticas sociais que as demandam".  

A essa altura, Britto nos convida a refletir quais implicações tem o debate sobre letramento e alfabetização para a educação infantil. Sua perplexidade em relação ao assunto se concentra na questão do debate em torno da preocupação de alfabetização em seu sentido mais restrito, "limitado ao desenvolvimento do conhecimento do código, numa dinâmica que em nada contribui para o desenvolvimento de uma educação crítica e solidária". Britto escreve claramente sobre seu assombro diante da situação a que estão expostas milhares de crianças:

"O grande desafio da educação infantil está exatamente
em, em vez de se preocupar em ensinar as letras, numa 
perspectiva redutora de alfabetização (ou de letramento), 
construir as bases para que as crianças possam 
participar criticamente da cultura escrita, 
conviver com essa organização do discurso
 escrito e experimentar de diferentes formas os
 modos de pensar escrito".   

Antecipar o ensino das letras sem trazer o debate da cultura escrita para o cotidiano é desrespeitar o tempo da infância e invocar uma educação tecnicista, argumenta Britto. A falta do hábito de questionar as práticas cotidianas na educação formal já justificou inúmeros equívocos percebidos ao longo da história. Somos, na maioria, frutos de uma educação que não aprendeu a debater as questões de interesse coletivo, mesmo diante de evidentes sinalizações de que essa educação silenciou vozes e corpos. 

O difícil desafio está em compreender, conforme Britto, como profissionais da educação infantil que não se furtam à reflexão, a inserção da criança no mundo da escrita para além de alfabetizá-la. É inseri-la em um universo cultural complexo em que a escrita se apresenta como mediadora de valores e formas de conhecimento (p. 17). Nesse processo, o letramento ou alfabetização se inicia bem antes da entrada da criança no ensino fundamental e não se encerra com o término da escolaridade. Assim, o contato com a linguagem escrita se concretizará se pudermos compreender que viver nesse mundo é dominar os discursos da escrita, ter condições de operar os modos de pensar e produzir a cultura escrita, lendo o mundo e lendo a palavra.

Desejo que em nós, adultos, se inicie o quanto antes esse mesmo processo: o de compreender como devemos mediar o contato da criança com a linguagem escrita, sem reduzi-lo a treino de letras, sílabas e palavras que a criança memoriza sem significado para ela. 


domingo, 12 de abril de 2015

A atividade lúdica e o desenvolvimento infantil: imaginação, para que te quero?

Certa vez alguém me pediu que eu lhe explicasse o que eu entendia sobre lúdico. Ora... as minhas explicações na época em nada se assemelham ao que diria hoje sobre essa palavra. 

Temos, como pedagogos, poucas oportunidades de nos aprofundar no tema na Formação Inicial e tampouco as garantiremos na Formação Continuada (leia-se Em Serviço). No entanto, deveríamos nos informar e refletir mais sobre. Mas por que a discussão deveria nos interessar? O que o lúdico tem a ver com a educação de crianças de 0 a 5 anos? Por que a mesma pessoa que me fez a pergunta há algum tempo, contou-me há poucos dias que seu filho de cinco anos foi descrito pela professora como "viajão", quer dizer, distraído, fantasioso, pouco centrado, sonhador? Parece-me preocupante que esse tipo de descrição continue ocorrendo da parte dos/as profissionais da Educação Infantil. Na verdade, as crianças estão perdendo enquanto não soubermos mais do que o senso comum sobre o que é o lúdico e que as crianças, como grupo geracional específico, vivem uma etapa chamada infância, que, convenhamos, tem movimentado a academia de forma significativa em busca de novos horizontes. 

Para a maioria de nós a palavra "lúdico" está associada  à diversão, brincadeira, fantasia, faz de conta, alegria. E pode ser mesmo isso. Mas só essas noções são vagas para pedagogos/as.

Na pré-escola, a atividade lúdica é a principal para a criança. E a atividade principal da criança é a brincadeira. Se a brincadeira invoca a imaginação, podemos depreender que a brincadeira é, em sua essência, lúdica. O problema em discutirmos o que é lúdico, qual o papel da brincadeira é que pouco sabemos sobre a brincadeira como categoria que concerne a nós, pedagogos, assim como o cálculo concerne ao matemático.

A atividade lúdica é humana e não está definida a priori: ela depende de condições concretas para se desenvolver. Para Rocha (1994), a caracterização da atividade lúdica é complexa, pelo fato de que, como outras atividades humanas, ela reflete em sua estrutura de funcionamento uma relação dialética entre o já dado e o inovador, entre o imaginado e o conhecido; nem pura fantasia (no sentido ausência/negação da realidade ) nem pura realidade transposta. A esfera lúdica permite a convivência de diversas contradições (p.62).  

Vigotski, Leontiev e Elkonin advertem que a atividade lúdica consiste na elaboração de formas especificamente humanas de representar, significar e conhecer o mundo que possibilita a criança constituir-se como sujeito, sem deixar de levar em consideração os fatores condicionantes da cultura ou das condições concretas de vida que modulam o desenvolvimento dos sujeitos. Sobretudo, esses autores enfatizam que a atividade lúdica não é natural e universal no homem. Ela dependente do contexto histórico-cultural em que este está inserido.

Vigotski e colaboradores negaram a tendência inata do brincar na criança, sobretudo o brincar como resultado de fatores maturacionais. Eles afirmam que a capacidade para brincar é resultado das relações sociais e das condições concretas de vida e, a partir delas, a criança emerge como sujeito lúdico.

Nas sociedades em que se deu mais fortemente o desenvolvimento das forças produtivas, da complexificação dos instrumentos e o surgimento de novas formas de divisão do trabalho, as crianças foram, gradativamente, sendo retiradas da esfera da vida adulta, agora mais complexa e exigindo novas responsabilidades. Essas condições histórico-culturais deram origem ao jogo de papéis. Os instrumentos de trabalho no contexto dessa sociedade perderam sua função originária, conservando apenas a semelhança externa com os instrumentos de trabalho utilizados pelos adultos. Foi esse cenário que deu origem aos brinquedos, através dos quais as crianças reproduzem, na esfera social, a vida adulta da qual ainda não participam mas desejam participar.

É exatamente no desejo de participar das atividades do mundo adulto que se desenvolve a brincadeira do jogo de papéis. O que a criança faz na brincadeira é tomado daquilo que ela observa as pessoas a sua volta fazerem concretamente. A criança representa no jogo o que há de típico na realidade concreta nos papéis conhecidos, como, por exemplo, o que há de típico em ser "mãe", ser "professora", ser "bombeiro".

De que forma a atividade da criança se caracteriza como lúdica (isto é, se emancipa da realidade)? É através da imaginação. A imaginação (processo psicológico especificamente humano) se origina da atividade lúdica. É a capacidade da criança em lidar com o mundo, atribuindo-lhe novos significados, além dos socialmente estabelecidos. É no jogo de papéis que o real e o imaginário se relacionam dialeticamente. O impulso criativo é aquele que permite á criança reordenar os elementos extraídos da realidade em novas combinações.

Portanto, à criança com "ar de sonhadora", que parece imersa em um "mundo à parte", o real e o imaginário estão implicados e os limites entre ambos são altamente permeáveis. A imaginação não é condição para que ela possa brincar. Na verdade, quanto mais ações lúdicas a criança puder desenvolver, mais o imaginário se compõe.
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Enquanto não compreendermos o papel da brincadeira, das interações sociais e da vivência de experiências diversificadas com a cultura historicamente acumulada para o desenvolvimento da personalidade e da inteligência, continuaremos defendendo a socialização da criança como um processo em que elas devem sofrer as ações dos adultos ao invés de participarem ativamente de seu próprio processo de humanização.  



quinta-feira, 9 de abril de 2015

A menina que aprendeu o segredo da porta

Estava sentada nas cadeiras de uma instituição bancária esperando a minha vez de ser atendida. Próximo de mim encontravam-se um homem, uma mulher e uma menina (de uns três anos, mais ou menos). Acompanhei-os com o olhar ao saírem pela porta giratória e ouvi um riso (dos adultos, acho, pais da criança) quando a menina, ao invés de empurrar a porta em sentido horário para sair, ela o fez ao contrário. A mãe a corrigiu: - Não, filhinha, é para o outro lado. A menina mudou o sentido, empurrando a porta novamente, agora ajudada pela mãe. 

Fiquei pensando nesse gesto criado pela humanidade ao longo da história - o de ensinar às gerações mais jovens de como as coisas da cultura funcionam - tão natural para nós, quando, na verdade, deveria nos assombrar sempre de novo. 

Professores e professoras, profissionais destacados para fazer a transição do saber acumulado às mãos das novas gerações têm de se admirar mais e mais com a arte de ensinar o que sabem, uma vez que estão incumbidos a exercer esse papel "intencionalmente" e de fazê-lo bem feito e sem desculpas, quaisquer que sejam elas. 

Se nós, profissionais da educação, acreditamos que esse processo deve ser sistematicamente planejado e organizado, não é difícil compreender a teoria histórico-cultural pois ela deseja esclarecer exatamente como isso se dá para cada novo integrante da sociedade. 

No caso das intervenções cotidianas é possível defender que o lugar ocupado pela criança nas relações sociais de que participa é força motivadora do seu desenvolvimento. Esse lugar é determinado pelas relações que os adultos estabelecem com ela. A "menina do banco" acompanhava os pais numa atividade cotidiana. Mas essa ocasião é muito importante para ela. As crianças não vivem num mundo à parte, já dizia Zilma de Oliveira. Os gestos cotidianos dos adultos são caracterizados como "modelo" para a criança de como nós nos tornamos seres humanos, partícipes das atividades criadas pela cultura. Nas instituições da pequena infância o processo é o mesmo, com a diferença de que lá o adulto tem uma formação específica para exercer esse papel, desenvolvendo-o por intermédio de ações planejadas para alcançar uma finalidade prevista intencionalmente.

Fica muito fácil compreender o que significa a ideia de que a Educação Infantil é complementar à família. Ora, para crianças pré-escolares (quer dizer, que frequentam a etapa anterior da escola), os adultos são potencialmente convocados a orientar as aprendizagens e nisto se empenham como atividade profissional, para a qual estudaram. Entre zero e seis anos, o mundo se abre para a criança com intensidade muito maior do que qualquer outro período em sua vida.

A presença da criança junto aos pais no banco pode significar que a criança construa, em contato com as capacidades, as aptidões e as habilidades que estes já desenvolveram, uma oportunidade de reproduzir para si  essas características, uma vez que os novos integrantes da sociedade relacionam-se com o mundo segundo suas condições concretas de vida e de educação.

Muitos profissionais da educação acreditam que a etapa da Educação Infantil tenha que se pautar nos objetivos relacionados ao trabalho com conteúdos como no Ensino Fundamental. Essa crença é oriunda, em parte, da situação em que a educação de crianças de 0 a 5 anos nasceu: dividida em assistencialista e escolarizante.

Ora, o que mais fará a Educação Infantil além de ensinar?

A questão chama para a discussão: por que não temos então a nomenclatura "Ensino Infantil"?

A Educação Infantil se relaciona diferentemente, pela sua especificidade que não é da etapa do ensino, com a formação da criança pequena em sua humanidade. As características humanas que almejamos, como alerta Marx (1962), todas as relações humanas com o mundo: a visão, o olfato, o gosto, o tato, o pensamento, a contemplação, o sentimento, a vontade, a atividade, o amor, enfim todos os órgãos da sua individualidade, são produtos da história, resultam da apropriação da realidade humana (MELLO, 1999). Logo, é necessária uma rica experiência desde o nascimento da criança: de contato com a natureza, com as outras pessoas e com a cultura acumulada pela humanidade ao longo da história. Segundo Mello, esse contato provoca no cérebro da criança as ligações neurais que criam o desenvolvimento da consciência e logo o desenvolvimento infantil.

Ana Lúcia Goulart de Faria* descreve de forma elucidativa o papel das instituições da pequena infância como um lugar onde o profissional vai trazer para as crianças os ambientes de vida num contexto educativo. Não vai dar aula, mas desorganizar o tempo e o espaço do mundo adulto, organizando-os para que as crianças produzam as culturas infantis, para que as crianças sejam crianças, construindo assim as dimensões humanas*.

Para compreender a lógica da construção da nossa humanidade por meio da cultura é preciso acessar a tese central de Vigotski e seus colaboradores que contradiz a concepção de que a criança já nasce com um conjunto de potencialidades inatas que as condições de vida e educação vão ajudar a desenvolver. No começo de nossa existência, a humanidade está externa a nós. Ao longo do processo de apropriação da cultura ao qual seremos expostos e com o qual tivermos contato, tornar-nos-emos seres humanos. Daí a importância de vivermos, desde bebês, num ambiente rico em objetos e instrumentos da cultura e com adultos dispostos mediar nossa relação com ele.

De qualquer forma é preciso que o educador identifique os elementos culturais que precisam ser assimilados pelas crianças para que elas desenvolvam ao máximo as aptidões, as capacidades, e as habilidades criadas ao longo da história pelas gerações antecedentes e descubra as formas adequadas de fazê-lo.

Assim, de vez em quando é preciso perguntar como crianças continuam a aprender o segredo de abrir as portas.


* Ana Lúcia Goulart de Faria foi orientadora de Doutorado da profª. Drª. Maria Carmen Barbosa.
* Esse pensamento encontra-se na obra "O mundo da escrita no universo da pequena infância", organizada por Faria e Mello (2005, p. 128).

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Anões e gigantes: o jardim da pré-escola

A Profª. Drª. Maria Carmen Barbosa continua me emocionando, principalmente depois de tê-la ouvido em três palestras, proferidas em diferentes municípios, aqui do norte catarinense, no ano passado. E foi também de sua última orientação de tese de Doutorado que me veio a grata satisfação em saber que minha concepção de Educação Infantil está consonante com as últimas pesquisas de especialistas e estudiosos da área e que não se trata de um delírio pessoal. (Quero frisar que a atualização e o abandono de antigas crenças é parte da vida de um docente. Não há vergonha alguma em mudar de concepção. Aliás, é um dos prazeres da profissão).  

Estou me referindo à tese de Doutorado de Cinthia Votto Fernandes (2014), intitulada "A identidade da Pré-Escola: entre a transição para o Ensino Fundamental e a obrigatoriedade da frequência". A pesquisa desenvolveu-se através de entrevistas com pais, professores e crianças a respeito das semelhanças e diferenças nas concepções desses sujeitos em relação à Pré-Escola e ao primeiro ano do Ensino Fundamental. Além de observações das crianças em atividade e da análise da representação por desenhos das crianças a respeito do significado para ela dessas duas instâncias educativas, o que também fez parte do trabalho.

É importante que se leia todo o trabalho mas principalmente que se atente ao que Fernandes conclui com a pesquisa e que se encontra nas "Considerações Finais" da tese. Em vinte e três parágrafos, seis páginas e mais ou menos noventa linhas, a autora descreve com exatidão a situação da Pré-Escola que encontrou na instituição pesquisada no Rio Grande do Sul e que coincide, incrivelmente, com a maioria da opinião de pais, professores, gestores, orientadores educacionais e crianças da sociedade do que seja o trabalho da Pré-Escola em muitos municípios brasileiros atualmente.  

Vejamos alguns excertos do trabalho: 

"Os significados presentes na narrativa dos atores do processo educativo sobre a pré-escola no contexto pesquisado trazem uma concepção de pré-escola que se traduz em uma identidade. [...] Dentre tantos significados percebi o predomínio de uma identidade preparatória". 

Prestemos atenção sobre o que autora quer dizer com "identidade preparatória". A mesma que venho percebendo, recorrente, da parte de pessoas que acreditam que são sabedoras do que deve a Educação Infantil empreender: preparar os pequenos para o papel de alunos. Ouvi, em alusão a essa certeza, frases que negavam a competência das crianças ao final da pré-escola por culpa de profissionais da educação que não cumpriram o seu papel: "Nem sabem segurar o lápis"; "Não reconhecem as letras do alfabeto"; "Não dominam os números de 1 a 9"; "Não vão conseguir ficar sentados na carteira", etc etc.

Em parágrafo seguinte novas deduções da autora:

"Parece haver o entendimento literal de que, na pré-escola, apesar de seu nome apenas identificá-la como etapa anterior à escola, o que ocorre é uma legitimação de uma pré-escolarização, ou seja, ações pedagógicas que possuem sua ênfase em situações de preparação de aprendizagem de leitura e escrita, como também de matemática e conhecimentos escolares pertencentes ao currículo do Ensino Fundamental. As referidas propostas são baseadas em atividade estéreis, sem significado para as crianças e relacionadas a um treino visomotor, não com intenção de ampliar as relações sociais, culturais e cognitivas. Estes conhecimentos, principalmente o da linguagem escrita, aparecem como grande foco da escolarização, apostando nesta preparação para que ocorra o sucesso das crianças nas etapas seguintes".

Salvo os docentes que publicamente se manifestaram indignados com essa realidade, os demais colegas parecem concordar com esses objetivos da Pré-Escola. Caso contrário não teríamos tantas fotocópias de atividades de treino a povoar as pastas das crianças, com intuito de surpreender positivamente os pais, no afã de parecerem-se docentes conscientes de seu papel como mediadores pedagógicos. Esses mesmos profissionais também poderiam ter-se dado conta, pelas inúmeras vezes que lhes foi esclarecido que, em se tratando de linguagem escrita, o significado se complexifica, uma vez que não se trata de apenas dominar as letras do alfabeto. Para a criança adentrar no mundo da leitura e da escrita necessário se faz reconhecer seu valor social e participar de eventos nos quais seja necessário ler e escrever, comunicando muito mais do que o traçado correto das letras e sim, sentimentos e emoções que envolvem essas ações.

Fernandes se aproxima intimamente de algumas concepções e sinaliza pontualmente:

"Essas ações pedagógicas, como os espaços pequenos organizados com mesas e cadeiras, com poucos brinquedos, sem espaços externos, tempo fragmentado dividido pelas atividades pedagógicas e ações de cuidado, sem permanência ou mesmo reduzido para a brincadeira, evidenciam uma espécie de aceleramento para que as crianças compreendam o quanto antes todos os fazeres que o "ofício de alunos" as impõem. Nesse sentido, essas práticas parecem aproximar-se de um processo de preparação para a escola de Ensino Fundamental, revelando um modo escolar de socialização [...]. Não há uma proposta em si, mas parece que a pré-escola possui como tarefa a adaptação à futura escola, o que diminui as possibilidades de desenvolver aspectos que, na escola, diante do modelo vigente do Ensino Fundamental, não serão oportunizados, como teatro, cinema, música, dança, além de outros conhecimentos que não são considerados legítimos socialmente".

Se invocássemos a fala de muitos profissionais da educação, solicitando que dessem depoimentos a favor de uma escola que lhes desenvolveu outras linguagens além da oral e da escrita, concluiríamos que temos grandes lacunas em nossa formação integral, uma vez que linguagens não valorizadas socialmente, diga-se economicamente, foram relegadas a segundo plano na maioria das escolas nos últimos trinta anos. É exatamente esse o papel que a Educação Infantil tem: desenvolver com as crianças outras linguagens, não privilegiando duas em detrimento das demais. Porém, para que isso seja realidade e de desejo dos adultos responsáveis pela educação dos pequenos, valorizando as experiências que trazem para as instituições mesmo pertencendo a um grupo tão jovem da sociedade, é preciso reconhecer que a Pré-Escola não se chama "pré" de preparatória e, sim, "pré", como etapa anterior, com uma especificidade que não pode ser subjugada oferecendo a promessa de futuro sucesso escolar. É genuíno reconhecer que muitos profissionais precisam urgentemente se dar conta de que não estão fazendo nem isso, nem aquilo. O que é deveras preocupante. (Discorrei sobre isso num próximo texto...).

"A pré-escola é significada, neste contexto, como um ambiente preparatório para que a criança tenha melhor desempenho na etapa seguinte, para tanto, são proporcionadas atividade baseadas no treino e na repetição, vazias de significados. Essa concepção pode ocorrer devido ao não entendimento das leis, bem como à forma de implantação destas e das diretrizes curriculares que norteiam nacionalmente tanto a Educação Infantil quanto o Ensino Fundamental".

Um grave equívoco aconteceu com a transposição das competências para as crianças que passaram a integrar com um ano de antecedência o Ensino Fundamental. Como se elas pudessem, por conta própria, desenvolver mecanismos para se comportar como alunos. Mais grave que isso: a responsabilidade, antes das crianças que hoje frequentam o primeiro ano do Ensino Fundamental, foi transferida para as crianças de quatro e cinco anos. A nomenclatura é autoexplicativa: pré I, crianças de três anos, completando quatro anos até 31 de março, comportando mochilas, com material escolar, como se fossem "alunos". Ora, a criança que se adapte? Por outro lado, os suportes e instrumentos de escrita são restringidos às crianças. Práticas que mobilizam experiências empobrecidas, revelando que as crianças deveriam mesmo, o quanto antes, crescer, uma vez que a infância é um período idílico, mas que não requer um debruçar sério da parte dos adultos.
    
Como última ideia que necessito acrescentar a essa discussão, busco o excerto da seção "Considerações Finais" da tese de Fernandes que, deduzo, fala por si. Qualquer semelhança é mera coincidência:

"[...] nesse cenário, parece existir, apesar de haver cursos de formação, uma dificuldade em compreender e construir uma política para a Educação Infantil, especialmente pela rede municipal. Os professores e o executivo do município parecem não saber acessar a novos conhecimentos sobre a Educação Infantil. Ademais, este último parece também não considerar fundamental para a qualificação da rede a formação continuada com temáticas que, efetivamente contribuam para a ação pedagógica nas instituições".




domingo, 5 de abril de 2015

Por que investir na brincadeira de faz de conta?

Esses dias ouvi de um adulto que a brincadeira era muito importante mas, que não era "qualquer brincadeira". Fiquei pensando se esse adulto sabe do que está falando, se ele pode analisar realmente sobre a importância da brincadeira e se reconhece o que verdadeiramente significa a frase "não qualquer brincadeira".

Desconfio que não sabe. Sem alardes ou culpa, nós, adultos, pouco entendemos sobre brincadeira ainda que tenhamos vivido a fase da infância e tenhamos nos constituído humanos porque pudemos brincar quando criança. Olhamos a criança brincando e já vamos pensando que é da sua natureza brincar. Certamente desconhecemos que ela aprendeu a brincar e foi com nossa preciosa ajuda.

É... é preciso brincar para se tornar ser humano. A brincadeira é o veículo, a forma, o suporte, a porta de acesso ao mundo humano e humanizado, sendo que ela permite a apropriação dos motivos e atividades humanos. Por isso estava certa a frase "não qualquer brincadeira". 

O problema de nós adultos é adulterar o sentido que a brincadeira tem para a criança. Se não encontrarmos um motivo útil para ela acontecer, negamo-lhe a importância. Mas por quê? Porque nos equivocamos redondamente ao considerarmos importantes apenas atividades "produtivas". No fim das contas há uma grande utilidade na brincadeira propriamente dita. Porém não no sentido utilitarista. 

A brincadeira infantil não é uma atividade produtiva. O motivo está no próprio processo. As ações e operações têm um fim em si mesmas. Assim, para a criança uma atividade lúdica não é adequada para alcançar objetivo algum. 


Sociedades menos desenvolvidas tecnologicamente conseguem inserir a criança nas atividades produtivas sem nenhum tipo de preparo especial. A brincadeira de papéis, então, surge no momento histórico em que há uma mudança no lugar da criança no sistema de relações sociais.

A criança da atualidade vive num mundo onde os processos de produção de bens se caracterizam cada vez mais complexos. A inserção da criança nesse mundo dá-se por mediações cada vez mais complexas. As crianças vivem grande parte da infância afastadas do trabalho dos adultos o que dá a ela uma desvantagem. Ela não fica sabendo como o mundo de objetos, instrumentos e bens é criado. O que ela vai fazer para se aproximar é brincar de faz de conta.


A brincadeira de faz de conta, no aspecto ontológico do ser humano, não surgiu espontaneamente; e sim, devido à educação, influência constante do adulto. 

O item mais importante na brincadeira de papéis é o homem e suas atividades. O mundo se descortina através do mundo das relações sociais, o que a leva a criança a agir como o adulto. Ela satisfaz sua necessidade na brincadeira, através de uma situação imaginária. Através do jogo o mundo das relações, que é complexo, fica acessível para a criança, isto é, possibilita-a ir para um nível mais elevado.  

Considerando que a brincadeira ocupa um lugar tão importante no desenvolvimento da inteligência e da personalidade da criança, concedendo-lhe acesso às qualidades humanas desejáveis (amizade, solidariedade, autocontrole, por exemplo) por que motivo tão pouco se investe para que a criança brinque cada vez mais e melhor?     


sábado, 4 de abril de 2015

Linguagem escrita e educação infantil: vozes entrecortadas

É denso o conflito entre o papel atribuído à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental pela sociedade atual. Parece que esquecemos que a escola é parte da cultura humana, expressão máxima do desenvolvimento tecnológico.


A cultura criou um arsenal de coisas que as crianças, nova geração que adentra paulatinamente à sociedade humana, precisam conhecer.

Quando nos afastamos um pouco do cotidiano e o olhamos de fora conseguimos apreciar essa paisagem onde adultos ajudam as crianças a acessar o mundo, principalmente a escola formalmente constituída para esse fim.

A escola, entre tantas coisas que deve dar conta, faz algo essencial para que as novas gerações se apropriem do conhecimento historicamente acumulado: ensina a ler e a escrever.

Dominar como funciona o código escrito é, em grande medida, o que a criança fica sabendo quando está no processo de alfabetização. Porém, esse processo perfaz um longo caminho.


Durante a maior parte de minha vida profissional no magistério não tinha me dado conta do significado que contém os primeiros contatos com a linguagem escrita pela criança. Talvez porque nunca tivesse compreendido bem o que é linguagem escrita e a tivesse confundido com o domínio do alfabeto e a construção de palavras rumo a obedecer as regras da língua portuguesa.

Assim como eu, muitos colegas vão ficar sem acessar o real processo que acontece com a criança quando ela passa a fazer parte de um mundo onde a linguagem escrita é utilizada para se comunicar, em correspondência com uma qualidade eminentemente desenvolvida pela nossa espécie.

Fico mais preocupada ainda quando ouço as concepções correntes dos colegas e me vejo estampada nesses discursos desconcertantes, que um dia também pronunciei, que bradam a todo vapor o que seria letramento na Educação Infantil.

Infelizmente a forma como as crianças são alfabetizadas não lhes deixa muita saída. Elas saberiam dizer-nos para que estão aprendendo a ler e a escrever? Deveríamos ouvi-las a esse respeito.

Mas o que tenho ouvido são discursos infundados, sobre práticas pedagógicas alienantes e pouco desenvolventes na trilha dos pesquisadores da área que afirmam outras concepções a respeito do que é ensinar a linguagem escrita às crianças pequenas da Educação Infantil.

Adoto os princípios da Teoria Histórico-Cultural para falar do assunto. Nesse sentido, para essa teoria, a linguagem escrita é um instrumento cultural complexo. Sua apropriação depende do acesso que o sujeito tem à parcela da herança cultural da humanidade. É essencial no processo ontogenético de humanização porque passam todos os seres humanos.

Quanto à explicação dada pela teoria Histórico-Cultural, deduzo que grande parte dos profissionais pouco refletem sobre o fato da linguagem escrita ser uma herança cultural que deva ser transmitida às gerações mais jovens. Parece que em nossa sociedade ocidental aprender a ler é um destino e que cedo ou tarde aprende-se mesmo. No entanto, a qualidade dessa transmissão é que garante a continuidade ou a produção de bons leitores e escritores de texto. Daí garantirmos que todas as crianças tenham oportunidades iguais quando do contato oferecido pela escola de educação infantil.

As famílias desfrutam de acesso aos livros de forma desigual. Uma criança que em casa tem pais que se utilizam de bilhetes para se comunicar, que fazem lista de compras, que leem jornais e revistas, que possuem livros e que os compram aos filhos, essas crianças têm mais chance de sentir-se parte do mundo da escrita. em comparação a outras crianças que não tem esse convívio. Se algumas crianças apresentam dificuldades com a linguagem escrita, a escola tende muitas vezes a explicar essas dificuldades pela herança genética que não privilegiou a criança. A culpa não é da escola e da sociedade. É da criança e sua família.

Eu diria que a escola está certa nesse sentido se não atentar mesmo à forma como vem agindo em relação à aquisição da linguagem escrita pelas crianças, de modo a perceber que está equivocada a sua concepção de alfabetizar e a maneira como vem procedendo.

É necessário abrir um novo leque de possibilidades. A valorização da linguagem escrita e os motivos de seu uso é aprendido pela criança socialmente. A formação e o desenvolvimento inicial dos conceitos se alimentam na criança pequena muito mais pelas sensações e pelas percepções do que por processos mentais. Por isso, o sentido depende mais dos conceitos partilhados socialmente. As crianças emprestam temporariamente dos adultos os significados atribuídos às coisas. Esses significados são internalizados até serem totalmente incorporados pela criança.

O lugar que a criança ocupa nas situações de contato com a escrita e igualmente o lugar que a escrita ocupa nesses lugares determinará o sentido para ela. São inúmeras as situações em que as crianças aprendem isso. Um/a professor/a que lê e lê para suas crianças ou que mostra que escreve para registrar e lembrar depois, que explica porque faz anotações sobre as crianças, que explora o primeiro signo importante na vida da criança: o nome dela e o expõe na sala e fala sobre ele constantemente, uma professora que anuncia que vai ser a escriba do que as crianças falam e que esse registro permitirá que revisitem o que foi dito, uma professora que cria novas histórias escritas com a ajuda das crianças, enfim,..a criança encontrar-se-á com a linguagem escrita muito cedo e o sentido que ela vai atribuir a ela depende de como se darão estes primeiros contatos.

Vai ficando para trás a discussão sobre se a criança vai escrever no caderno, no quadro, no papel craft, na parede, na folha sulfite ou onde quer que seja. Importante é falar com ela sobre do porquê ela se utiliza dessa forma e o que essa forma comunica de nós, seres humanos.

Quando as crianças chegam ao Ensino Fundamental deveriam, fundamentalmente, responder sobre o sentido da escrita para elas. Um/a profissional da educação que refletir sobre essa pergunta pensando em si mesmo terá grande chance de transformar suas concepções sobre o quê estamos ensinando sobre linguagem escrita às crianças.

A bem da verdade, se nossas crianças ainda estão sendo avaliadas como defasadas quando da entrada no Ensino Fundamental em relação ao que deveriam dominar sobre linguagem escrita, não de todo errados estão esses docentes que chegam à conclusão de que algo faltou. É que faltou mesmo: professores/as da educação infantil não se atualizam e com a melhor das intenções não escolhem práticas promovedoras que inserem às crianças na sociedade letrada. As "atividades" que caracterizam o preparo para o domínio da leitura e da escrita estão longe de serem as que realmente a promovem. São atividades de mãos e dedos, no dizer de Vigotski, e não de reflexão do para quê e do porquê se escreve. Consequentemente, a opção recai sobre treinos estéreis, que perpassam desde colar bolinhas sobre as letras do nome, passar lápis sobre pontilhados das letras, copiar do quadro palavras que começam com a letra igual, estudar antes do tempo e do interesse da criança que letras compõem seu nome, enquanto sequer se analisa que significa ter um nome o que faz de cada um ser único e irrepetível.

Fico muito preocupada que essa discussão é sempre abortada e a educação infantil não avança enquanto docentes do Ensino Fundamental acusam de incompetentes seus pares. Não me parece próximo o dia em que chegaremos a bom termo sobre o assunto. Tem-se à vista, isto sim, um quase retrocesso.

Poucos profissionais da educação infantil sabem que a forma como a linguagem escrita é apresentada à criança faz uma grande diferença. A escrita deve ser mostrada à criança em sua função social, como para escrever histórias, bilhetes, registrar experiências vividas, fatos, enfim, como instrumento de expressão. Mas quando se acompanham as produções escritas das crianças e professores/as vê-se uma timidez estranha em seu uso. Os/as professores/as pouco escrevem para registrar o que as crianças dizem, pouco utilizam de instrumentos e suportes de escrita diversificados. Pouco expõe por escrito suas próprias ideias e dizem isso às crianças. Os docentes não gostam de escrever, parece que poucos se identificam com a linguagem escrita como instrumento de expressão da profissão. Se assim não fosse, não precisariam queixar-se tanto dos relatórios de vivências das crianças emitidos semestralmente aos pais. Aproveitariam e diriam para suas crianças que eles/as (os/as professores/as) contam aos pais o que o grupo viveu com ele/a nesse período do ano.

Meu otimismo me alerta que as coisas podem um dia ficar com esse aspecto mas ainda vai demorar um pouco. Se crianças demonstrarem paixão por escrever e alegria em ler, terão visto os adultos emprestando esse significado enquanto eles ainda não puderem expressar por conta própria.

A teoria é um instrumento indispensável para a organização e reorganização das concepções que orientam nosso pensar e nosso agir. Se pudesse indicar uma boa teoria a ser estudada nesses termos que venho utilizando para justificar a importância da apresentação da leitura e da escrita como instrumento cultural, seria, reiterando, então, a teoria histórico-cultural.

Acredito que Magda Soares (2004, p. 16) dá uma importante contribuição, no sentido de clarear-nos que aspectos concernem à Educação Infantil quando se fala em alfabetização. Sem ingenuidade gratuita, sou sabedora que cada professor, cada professora deve buscar seu próprio processo de apropriação do que significam as palavras de Soares, principalmente quando ela aborda a participação da criança em eventos de leitura e escrita. Sem impor uma situação que pouco significa, é preciso encontrar diariamente os motivos, junto às crianças, do porquê escrevemos e lemos. Soares indica um caminho a esse respeito:

"[...] a educação infantil não deve ter como meta a efetivação da alfabetização (processo de aquisição e de apropriação dos sistema de escrita alfabético e ortográfico). Porém, é necessário que o planejamento da prática pedagógica contemple a introdução ou a ampliação, na vida das crianças, de um "contexto de letramento", entendido como a etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos variados de leitura e escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas".



Espero que este texto vá ao encontro dos colegas que muito rapidamente selaram minha concepção de linguagem escrita como irresponsável e ingênua. Reconheço, sim, sua complexidade e que isso seja também assim encarado pelos meus pares. 




sexta-feira, 3 de abril de 2015

Amor e letramento

O mundo todo foi/é nominado, criação após criação, objeto após objeto.

Para cada novo integrante do mundo repete-se o ensinamento do nome das coisas, dos objetos, dos seres da natureza, dos bens culturalmente criados através das palavras.

As palavras assumem generalizações, então o nome de um objeto é seu signo, sua representação.

Um signo é assim considerado porque ele assume o sentido dentro da palavra, segundo um contexto.

Sem contexto seria apenas um sinal.

Signo tem sempre a conotação de algo que assume um sentido específico para alguém, num certo lugar, em certa época.


Um desenho é também uma representação do objeto.

A nominação e o desenho são representações de primeira ordem, segundo Vigotski.

Escrever a palavra, antes dita, que representa o objeto é uma nova representação: a da fala por intermédio de um outro signo: as letras que formam a palavra.

A escrita não representa o objeto propriamente, mas o que se convencionou como signo que o representa.

A escrita representa a fala (denominação do objeto), bem como as ideias, os sentimentos.

A escrita é uma representação de segunda ordem porque ela não traduz o objeto diretamente e sim a palavra que o representa, o signo.

O nome criado para o objeto é o que se representa pela escrita.

Existem criações humanas que são imateriais, apenas passíveis de serem representadas por metáforas.

Um exemplo disso é o amor.

O amor não é possível definir como objeto, criado pela cultura, nem pela natureza.

Ele não tem materialidade física, mas a maioria de nós logo reconhece o que significa amor e como se manifesta. Ninguém confunde amor com ódio.

O amor, por não ser possível de visualizar como objeto em forma de matéria, não pode ser exatamente desenhado. (Ou pode!)

O amor recebeu uma sequência de letras que fazem seu signo.

É signo porque a palavra amor representa um sentimento que, dependendo do contexto, recebe conotação diversa. Então:

1 – isto é amor (uma cena de pai/mãe com filho; um casal de namorados) como representação por uma palavra que se pronuncia e que a representa para todo o sempre. Sem atribuição de sentido pelo contexto, as letras passam apenas a ser sinais.
Assim é o amor quando desenhado (não sei que desenho o representaria)

A palavra que representa o amor, seu signo, é escrita com quatro letras: a + m + o + r. Este é o último estágio do letramento, quando o "para quê se escreve" já é de domínio da criança. 

Quando uma criança aprende a linguagem escrita é este o processo que deveria percorrer. Por causa do desconhecimento por parte de alguns profissionais da educação, o processo de se tornar leitor e produtor de textos é simplificado e não passa de exercício de codificação e decodificação de palavras.
A leitura e a escrita tornar-se-ão, no futuro, um momento de pouco prazer.   

Crianças e socialização nos tempos atuais

Não posso me contentar com o que sabia há vinte anos sobre criança/infância. Sequer tomar como base minha própria infância ou a infância com a qual tenho tido contato como professora nesses anos todos da minha carreira profissional. As pesquisas científicas encabeçadas por mestres e doutores nas Universidades nos assombram com novos dados sobre o que é ser criança nos tempos atuais. 

Uma contribuição importante vem da Sociologia da Infância, na voz de Sarmento (2005, p. 371), que sinaliza as mudanças na concepção de criança engendrada pela sociedade ocidental nas últimas duas décadas. O autor esclarece que a Sociologia da Infância tem se colocado contrária à orientação aglutinante do senso comum sobre a infância, fazendo uma distinção semântica e conceitual, afirmando que se trata de uma categoria social do tipo geracional e criança, um sujeito concreto que integra essa categoria e que, na sua existência, para além de pertencer a um grupo etário próprio, é sempre um ator social que pertence a uma classe e a um gênero (apud PEREIRA, 2011).

Uma vez que levamos em consideração as palavras de Sarmento podemos entender melhor que a criança deveria ser vista pelos adultos, e, principalmente pelos profissionais da educação, como um ser social pleno, protagonista, agente ativo, competente, criativo, produtor de cultura, dotado de capacidade de ação e de (re) criar e compartilhar significados.

À primeira vista parece fácil, porém, mudar a perspectiva de uma sociedade sobre quem são as crianças e como sua educação deve atualizar-se pelas pesquisas que vem sendo publicadas em número significativo nas Universidades é, ainda, uma grande dificuldade que eu percebo. As próprias pesquisas lançam diferentes olhares sobre as crianças e a infância. Em grande medida, esses olhares caracterizam em parte como docentes olham suas crianças. 

Christensen e Prout (2002) indicaram quatro formas de ver as crianças e a infância nas pesquisas analisadas por eles: 
1 - A criança concebida como objeto de análise em relação aos adultos: seriam elas incompetentes, incompletas em relação ao desenvolvimento. As crianças emitem poucos dados sobre elas próprias. As informações vem geralmente através dos adultos (pais, professores);
2 - A criança é julgada pelas competências sociais e habilidades cognitivas que apresenta (sempre comparadas com as que os adultos já conquistaram);
3 - Criança como ator participante, com suas próprias experiências e interpretações do mundo;
4 - Crianças assumidas como informantes, envolvidas e co-produtoras.

Essas quatro perspectivas sobre a criança influenciam educadores em muitos aspectos, fazendo com que decidam que intervenções devam fazer na educação das crianças, com que percebam necessidades e ignorem outras, optem por socializá-las rumo às competências deles mesmos como adultos, influenciam-nos a tratar as crianças como imaturas o que reforçaria sua incompetência.

Percebe-se que as teorias da socialização das crianças têm preferido ficar mais na estabilidade do que encarar o desequilíbrio das incertezas e com isso anunciar as transformações das práticas educativas nas instituições formais. Pires (2013), que pesquisou sobre "Cinema e infâncias", convoca-nos a lançar um novo olhar sobre nós, adultos, e crianças, quando se trata de determinar se é possível encerrar nosso ciclo educativo antes de nosso desaparecimento:

"[...] as teorias da socialização precisam ser repensadas de forma a entender as crianças não como seres em devir, mas sim como parte integrante da sociedade na condição de crianças que são. Elas também são a sociedade, assim como a infância é uma parte estrutural da sociedade. Considero que todos nós, crianças, adultos e idosos, somos seres em devir, incompletos em todas as idades e fases da vida, por isso sempre em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que já somos, a cada tempo, uma versão de nós mesmos, que já integra, participa e interfere na sociedade. Amadurecer, desenvolver, tornar-se alguém diferente do que vinha sendo é algo que perpassa toda a vida do indivíduo" (2013, p. 27).

Isto posto, podemos, com mais equilíbrio e tranquilidade, permitir que sejamos, como as crianças, incompletos formadores das novas gerações que, por compartilhar e reinventar o mundo com elas, refazem-se constantemente, sem que nos percamos na ideia de que sabemos tudo já, agora e para sempre.